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14 de abril de 2023

A miséria que alicerça o crime

A data do próximo encontro se aproxima, então vou deixar aqui algumas palavras sobre essa obra que é uma das melhores de um dos maiores escritores que o mundo já conheceu. Peço desculpas pelos parcos comentários sobre o livro, há bem mais o que dizer sobre ele do que o que direi agora, mas muito do que se pode dizer, já foi ou ainda será dito pelos membros do nosso clube e alguns críticos. Mas, depois de tantos “quês” e “ditos”, toda contribuição é válida quando se pretende valorizar um bom livro e conversar sobre ele. Então, vamos ao que interesse.

Angústia é um nome perfeito para o romance de Graciliano Ramos, tanto pela forma como vive e sente o mundo o protagonista, como por nós leitores que nos vemos angustiados, senão durante todo o livro, pelo menos durante grande parte dele, graças à narrativa de Luís Pereira da Silva e suas queixas e considerações sobre o mundo e as pessoas que o rodeiam e rodearam, condicionada na forma e estilo da poética de Graciliano Ramos.

Num fluxo de consciência e monólogo interior, o texto é contado a partir do fim, de cerca de trinta dias depois de Luís da Silva ter acordado dos delírios de febre que lhe acometeram após o dia em que assassinou Julião Tavares. Desde esse momento, através de um flashback, passamos a conhecer o passado do protagonista, sua vida na fazenda com seu pai, seu avô, mãe, caboclos, cangaceiros e pistoleiros que rendiam respeito ao seu avô, além de sua história recente com Marina e seus amigos, e, em pequenas digressões, determinados casos que viveu na sua terrível passagem pelo Rio de Janeiro, dentre outras lembranças periféricas.

O flashback a que me referi acima é, na verdade, uma soma de flashbacks coordenados, por assim dizer, em três grupos de memória, ou como nomina Silviano Santiago, três processos, sendo dois de rememoração e o último, um processo interno. Chamo de três grupos por entender que o terceiro também é memória. São eles: a lembrança do passado distante de Luís — sua vida no campo quando criança —, a lembrança mais recente — aquela de seu momento atual, referindo-se a sua vida pouco antes de conhecer Marina, por quem se apaixona, até o enforcamento de Julião —, e a derradeira, a qual se refere Silviano Santiago como processo interno, que "produz uma quantidade apreciável de casulos de redundância no tecido narrativo” (SANTIAGO, 2011, p. 344, grifos do autor). Santiago se refere às repetições que ocorrem durante o texto, com a aparição e sumiço repentino de certos elementos e passagens, o que para alguns críticos foi entendido como um defeito de pleonasmo, mas que na verdade é parte da forma e do estilo adotado para o livro que muito contribui para nos dar a sensação de ansiedade, bagunça mental e angústia por que passa o protagonista.

Todas essas lembranças, esse passado, pareciam fazer de Luís da Silva inferior, ou pelo menos sentir-se inferior, só — profundamente só —, e desiludido com a vida. Deduções a que podemos chegar através das declarações de Luís, sempre assombradas e feridas, e que, por sinal, vêm sobrepostas, entrelaçadas, com idas e vindas de uma história a outra, do passado ao presente, numa forma anacrônica; declarações que surgem atropelando-se e substituindo-se sem aviso de mudança temporal. As lembranças de ocorrências antigas invadem relatos de coisas recentes como para justificar ou complementar o sentido do que se diz agora; ou invadem simplesmente porque o pensamento de Luís é vago, desconexo, demonstrando pouca saúde mental — talvez devido a resquícios da febre pela qual passou, ou ainda, e mais provável, demonstra-se pouco saudável pela soma de acontecimentos que permearam sua vida, antiga e recente.

A soma desses passados, revividos na sua lembrança, incomoda Luís da Silva, funciona como combustível e fermento que se unem aos tormentos últimos e inflama a ferida já há muito aberta e recentemente agravada com a presença de figuras detestáveis aos seus olhos como o rico Julião Tavares, esnobe, metido a culto e literato, enganador de meninas pobres, mau-caráter e que, como se não bastasse, seduziu e lhe tomou a noiva. Além deste, o incomodam os vizinhos fofoqueiros, o trabalho e a sua desventurosa paixão por Marina, menina linda, sedutora, invejosa da riqueza, da suposta boa vida e bem-aventurança alheia, bem como sedenta por luxo e esbanjamento, apesar de ser filha de pais pobres e malfadados, atributos de Marina que a tornam nada confiável. Enfim, tudo engrossa o caldeirão de situações, piorando o estado de ânimo de Luís, que ainda perdeu com seu noivado todas as economias acumuladas sofregamente.

Talvez por Luís ter passado dias perdido em devaneios de febre, após o crime cometido, ele nos conta sua história como se turvado por sombras, como sonhos que ele mesmo parece não ter certeza se realmente aconteceram, ou se aconteceram como ele se lembra, segundo o próprio Luís da Silva deixa transparecer ainda no início do relato: “Das visões que me perseguiam naquelas noites compridas umas sombras permanecem, sombras que se misturam à realidade e me produzem calafrios” (RAMOS, 2011, p. 21).

As noites compridas a que se refere são as que começaram logo após cometer o crime, quando volta para casa e parece entrar numa espécie de transe, alvejado por lembranças confusas e disformes, surrealistas como os quadros de Salvador Dalí.

Febril, histórias se sobrepõem, imagens alucinadas invadem seus olhos suspendendo-o num mundo fantástico e terrível, possivelmente vitimado pela culpa do crime, à semelhança do célebre estudante de direito, Rodion Românovitch Raskólnikov, de Dostoiévski, em Crime e castigo (1866), quando esse comete o assassinato e sofre por ter que viver com a culpa e toda a carga moral e psicológica do ato, quase enlouquecendo, expondo ao leitor todas as cores do sofrimento que acarreta o sentimento de culpa sobre um homem.

E é também dessa forma que se alucina e sofre Luís da Silva, homem simples de origem, marcado em sua simplicidade no próprio sobrenome, comum, vulgar entre as famílias brasileiras, “um cidadão como os outros, um diminuto cidadão que vai para o trabalho maçador, um Luís da Silva qualquer” (p. 35), como ele mesmo se define; porém consciente do mundo em que vive e dos seus atos. Como Raskólnikov no livro do russo. Semelhança que não pode nos causar estranhamento.

Entre Graciliano Ramos e os russos, sobretudo Dostoiévski, alguns pontos convergem: o estilo seco, duro, de traços naturalistas, sem pedantismo de linguagem ou mesmo maneirismo com o fim de suscitar esperanças românticas, e um forte apelo psicológico como, especificamente, ocorre em Angústia, à semelhança dos romances do autor de Crime e Castigo (1866), O idiota (1869) e Irmãos Karamázov (1881) — parte da obra que foi objeto dos primeiros estudos de Freud sobre a psicologia humana, segundo este revelou, tamanha é a carga humana e psicológica dos personagens do russo. Assim, se Freud é o pai da psicanálise, Dostoiévski seria uma espécie de avô?

Mas nos atendo ao romance do Velho Graça, através dessa enxurrada psicológica que quase transborda pelos quatro cantos do texto, toda a vida de Luís parece ter sido uma maçada, um incômodo. Oprimido pela realidade social e por si mesmo, via o mundo distante como se não vivesse realmente nele por inteiro. Havia sempre entre ele e os outros uma distância, um fosso de desconfiança e ódio. Não se entregava, não confiava em ninguém, não era parte de nada verdadeiramente. Até mesmo sua paixão por Marina era desconfiada e se assemelhava à posse e paixão sexual, e não a amor.

Ouvindo os relatos de Luís — digo ouvindo e não lendo porque, dada a qualidade deles, na sua força expressiva, podemos ter a impressão de que ele está a nossa frente nos narrando tudo, como num depoimento policial —, mas enfim, ouvindo Luís percebemos vários traços de sua personalidade, como certo ar de demência ranzinza: um homem distante, frio muitas vezes, e com atitudes sovinas que iam além da necessidade de seu estado de pobreza, e das exigências descabidas de Marina, como quando, conversando com esta e sua mãe, d. Adélia, sobre o casamento, considera razoável dispensar até mesmo o véu da noiva, normalmente um sacrilégio para esta:

— Estávamos combinando, Marina. Quanto mais depressa melhor, foi o que eu disse a d. Adélia. Gente pobre não tem luxo.
— É preciso fazer as coisas com decência, opinou Marina.
— Claro. Mas com modéstia. Não é, d. Adélia? Dispensa-se o véu. Para quê véu? Eu por mim casava hoje (2011, p. 81-82, grifo nosso).

Além disso, essa pressa para casar, “Quanto mais depressa melhor” e “Eu por mim casava hoje” mostram o medo da perda, a necessidade de se ver logo tudo decidido, irremediável, definido entre ele e a noiva, buscando com isso evitar um novo malogro na sua vida, uma nova decepção e tristeza; o que não consegue evitar, como sabemos.

Contudo, outros traços de sua personalidade nos surgem, como seu complexo de inferioridade; mas um complexo, por assim dizer, que não o reduz a zero, o diminui, mas o colocando dentro da sociedade, com certo valor, porém um valor baixo, o que indica que sofre, no entanto, não está de todo ausente de esperança ou algum amor próprio. Diz ele: “Considerava-me um valor, valor miúdo, uma espécie de níquel social, mas enfim, valor” (p. 50).

Possivelmente se considerava miúdo porque, vindo do mato para a cidade grande, primeiro sofre no Rio de Janeiro, passa fome, depois em Maceió, vive essa vida subjugada pelos boçais como Julião Tavares e pelos trabalhos que realiza para sobreviver — funcionário público e redator de textos políticos tendenciosos em troca de dinheiro, uma espécie de ghost writer. Enfim, um homem que se encolhe, como faz no café: “A mesa a que me sento fica ao pé da vitrina dos cigarros. É um lugar incômodo: as pessoas que entram e as que saem empurram-me as pernas. [...] passo ali uma hora, encolhido junto à porta, distraindo-me” (2011, p. 35), e completa na página seguinte: “Uma criaturinha insignificante, um percevejo social, acanhado, encolhido para não ser empurrado pelos que entram e pelos que saem” (2011, p. 37).

Como uma das consequências, tudo isso o deixa mais distante do mundo. E essa distância é mais sentida quando nos deparamos com seu relato sobre a morte e o velório do pai, quando Luís tenta chorar, mas não consegue; o pai é outro, distante dele, não lhe comove realmente, portanto, ele nada sente. Sua distância é marcada pela ausência de sentimentos, de lágrimas pelo pai; na verdade, todo aquele clima incomoda-lhe:

Penso na morte do meu pai. [...] Fui sentar-me numa prensa de farinha que havia no fundo do nosso quintal. Tentei chorar, mas não tinha vontade de chorar. [...] Sentia frio e pena de mim mesmo. A casa era dos outros. Eu estava ali como um bichinho abandonado, encolhido na prensa que apodrecia (2011, p. 31).

E quando chorou, não foi pelo pai: “Na verdade chorava por causa da xícara de café de Rosenda, mas consegui enganar-me e evitei remorsos” (2011, p. 33). Rosenda havia acordado Luís com um café no dia do enterro.

Já sua desilusão com a vida era fruto de uma forma de determinismo:

Estudava-me ao espelho, via, por entre as linhas dos anúncios, os beiços franzidos, os dentes acavalados, os olhos sem brilho, a testa enrugada. Procurava os vestígios das duas raças infelizes. Foram elas que me tornaram a vida amarga e me fizeram rolar por este mundo, faminto, esmolambado e cheio de sonhos (2011, p. 164).

Referia-se, quando falava das duas raças, ao avô negro chicoteado pelo feitor há 200 anos e ao avô caboclo, emboscado pelos brancos. Mas ainda sobre o determinismo, Jean-Paul Sartre dizia que, “[...] qualquer que seja o nosso ser, é escolha; e depende de nós escolhermos como ‘ilustres’ e ‘nobres’, ou ‘inferiores’ e ‘humilhados’” (SARTRE, 2001, p. 581). Ao contrário disso, o protagonista de Graciliano Ramos se vê escolhido.

Assim vive Luís da Silva, tomado pelo passado e pela fúria com o presente opressor. Sua angústia é a de Kierkegaard, que alega que a angústia surge da impossibilidade de realização de algo. Há a possibilidade, mas esta não se transforma em algo real, não se executa, daí a angústia pelo nada, pois essa realidade existe apenas como possibilidade e não como realidade, feito o que acontece com Luís da Silva que quer um mundo novo, diferente da dor em que vive, mas isso não acontece, e esse não acontecer o angustia. A falta de uma família feliz, de um amor verdadeiro, de amigos verdadeiros, tudo se mostra como a irrealização da possibilidade, ficando apenas na realidade do seu espírito. Nas palavras de Kierkegaard:

[...] A realidade do espírito mostra-se continuamente como uma forma que atrai sua possibilidade, todavia ela desaparece, tão logo que essa a agarra; é um nada, que nada pode, a não ser, angustiar. Mais ela não pode, enquanto ela meramente se mostra (KIERKEGAARD, 1952, p. 39).

Essa é a realidade da liberdade como possibilidade para a possibilidade, ou seja, o indivíduo tem na angústia uma forma de liberdade, porém, cativa, liberdade que só existe na possibilidade, que vive na angústia, e a angústia é a liberdade presa ali:

[...] a possibilidade da liberdade não é poder escolher entre o bem e o mal. [...] A possibilidade é o poder. Num sistema lógico é bem cômodo dizer que a possibilidade transforma-se na realidade. Na realidade, isso não é assim tão fácil e precisa-se de uma determinação intermediária. Essa determinação intermediária é a angústia, que tampouco explica o salto qualitativo como o justifica eticamente. A angústia não é nenhuma determinação da necessidade, mas também nenhuma da liberdade, ela é uma liberdade cativa, onde a liberdade em si mesma não é livre, mas sim cativa, não na necessidade, mas sim em si mesma (KIERKEGAARD, 1952, p. 47-48).

Aqui Luís da Silva aproxima-se ainda mais de Kierkegaard, essa angústia provoca uma ação, um salto para um novo estágio; estágio que, em Luís da Silva o leva ao assassinato, como uma busca pela liberdade de tudo o que o aflige. E na tentativa de realizar essa liberdade que, como eu disse, está apenas na possibilidade, presa na angústia, ele percebe que, após a morte, a liberdade seria impossível; daí vem a culpa, das consequências da ação que a angústia o levou a cometer.

A angústia para Kierkegaard permite que o homem descubra a diferença entre o bem e o mal; contudo, esse conhecimento também o angustia, pois percebe que não pode ser livre porque vive numa realidade de pecado. Dessa forma, a angústia é inerente ao homem, ela nos proporciona saltos, evoluções, faz-nos procurar ir adiante, e nos acompanha a vida inteira.

Outro ponto onde a angústia de Kierkegaard encontra a do protagonista de Graciliano Ramos é quando o filósofo afirma que não é possível angustiar-se do passado. E aí vocês me perguntam: mas no livro do Velho Graça não é também o passado que angustia o anti-herói? Sim, é. Por isso Kierkegaard diz que não é possível angustiar-se do passado, a não ser que haja uma relação de futuro com o indivíduo, ou seja, o que ocorreu no passado tem, no sentimento de culpa por ele, ou simplesmente na crença do indivíduo, a possibilidade de se repetir:

O passado, do qual eu devo me angustiar, precisa estar numa relação de possibilidade comigo. Se me angustio de uma desgraça passada, então, neste caso, não é que ela é passada, mas sim que ela pode, neste caso, se repetir, i. é, tornar-se futura. [...] Se ela é mesmo [realmente] passada, então não posso me angustiar, mas somente me arrepender. Se eu não o faço, então eu me permiti antes fazer minha relação com ela dialética, mas com isso, a infração se tornou ela mesma uma possibilidade e não algo passado. Se me angustio diante do castigo, então este é posto somente, tão logo, numa relação dialética com a infração (caso contrário, carrego meu castigo) e, então, eu me angustio diante da possibilidade e diante do futuro (KIERKEGAARD, 1952, p. 93).

E assim é Luís da Silva, constantemente relembrando o passado, a solidão, a tristeza, os dias de miséria, a falta de amor familiar e sua inadaptação ao mundo, fatos que ele teme se repetirem indefinidamente no futuro. O medo desse futuro ser um eterno moto-contínuo, a se repetir como um feitiço do tempo, quando os dias renascem iguais e a vítima desses dias revive tudo outra vez do mesmo jeito, provoca sua angústia. Daí, nesse sentido, o passado angustia e Luís da Silva encontra Kierkegaard.

Mas a angústia desse Silva também é a de Heidegger,

A angústia se angustia pelo próprio ser-no-mundo. [...]. O mundo não é mais capaz de oferecer alguma coisa nem sequer a co-presença dos outros. A angústia retira, pois, do ser-aí a possibilidade de, na decadência, compreender a si mesmo a partir do mundo e na interpretação pública (1986, §40, p.254).

A angústia do anti-herói de Graciliano Ramos é fruto do embate com a realidade, da sua presença nela, da sua existência em um mundo que não pode oferecer-lhe nada, ou pelo menos o que ele almeja. O ser-no-mundo de Heidegger, em Luís da Silva é a falta de compreensão com o outro, do seu papel, ou o que julgaria merecer, é a incompreensão da injustiça que julga sofrer. Angustia-se por não se realizar como ser-aí, que não vai a lugar nenhum.

Mas deixando a filosofia de lado e nos dirigido ao texto como estrutura, como construção. Para alcançar todo esse campo magnético de sombra e angústia, Graciliano Ramos não fez uso apenas de conhecimentos filosóficos, ou mesmo de suas próprias concepções do terror humano; uma boa dose de preocupação estilística foi usada em metáforas, em termos pesados, em declarações sufocantes, repetições que soam como redundâncias para alguns, mas que na verdade são formas de alcançar uma expressão que dê ao texto e, sobretudo à figura do anti-herói, a densidade necessária para ele ser quem é e para dar aos leitores a verossimilhança exigida que nos fará acreditar na história e no estado de ânimo de Luís, assim como no mundo existente no livro.

Alguns exemplos deixam clara essa intenção de intensificar o sentido do texto, como quando Luís da Silva está num bonde e este segue cruzando a cidade. Observando o tempo lá fora ele vê “os focos de iluminação pública, espaçados. Cochilando, piongos, tão piongos como luzes de cemitério” (2011, p. 26). Observação que dá vida a esses postes, na sua visão interior; vida bastante para cochilarem melancólicos (piongos), de uma tristeza tão profunda que se assemelham a “luzes de cemitério” — expressão que, assim como “cochilando” e “piongos”, remetem-nos à tristeza, a pesar; sensações presentes no ânimo de Luís, e imagens difíceis de serem lidas sem nos submeter à densidade do estado de espírito do personagem e do mundo segundo seus olhos.

Densidade que também recai sobre a chuva que envolvia Luís nos seus dias de inverno na serra: “Nos meses compridos daqueles invernos de serra muitas vezes fiquei tardes inteiras sentado à porta da nossa casa na vila, olhando a rua que desaparecia debaixo de um lençol branco de água em pó” (2011, p. 28, grifo meu). A cena traz solidão e desolação, vendo a rua sumir no véu da chuva, chuva que Luís descreve como “lençol branco de água em pó”. A densidade está na água que se assemelha a pó, embota a visão, turva, encobre e pesa. A água é quase sólida, é pó, e representa a vida de Luís, assombrada, sem limpidez. Por isso, seus olhos tristes já sofrem tendenciosos quanto a tudo o que presencia. Cada visão é distorcida para a sua dor da existência. No seu modo de ver, nada é claro e puro, nem mesmo a água que cai do céu.

Em outro momento, Luís da Silva nos descreve sua visão sobre si mesmo; um ponto de vista depreciativo e bastante significativo para que entendamos como ele mesmo se via e como queria que nós o víssemos, numa espécie de tentativa de nos causar empatia reversa, ou contraditória, como se buscasse nos impingir repulsa pelo seu estado miserável e pelo estado do mundo que o cerca, mas também nos causar pena, dó e sentimento de afeição e piedade pelo que ele tem se tornado. Seu mundo e sua vida claustrofóbica pela empatia, desejada ou imposta, causa-nos também claustrofobia. Acompanhamos sua história sempre com a sensação de que as paredes se fecham sobre nós, e a imagem de Luís pode nos dar pena ou repulsa. Enfim, diz ele sobre si: “Não sou o que era naquele tempo [da infância]. Falta-me tranquilidade, falta-me inocência, estou feito um molambo que a cidade puiu demais e sujou” (2011, p. 34, grifo meu). A cidade não o salvou do passado, ela potencializou seu estado de miséria.

Usei essas passagens, todas ainda do começo do texto, para mostrar que o narrador/personagem nos quer fazer entender sua condição desde o início do seu relato. Seu flashback vai gradualmente, e por intermédio de imagens fortes e histórias tensas de solidão e angústia, apresentando-nos seu mundo e o que construiu, o que pavimentou o caminho até este desembocar no assassinato.

Em suma, a vida de Luís da Silva é miserável como tudo o que ele descreve. O mundo parece acabar-se aos poucos, perder o sentido — se é que já teve um algum dia —, a depravação domina o mundo e a natureza de todos — menos a dele que, apesar de se esfregar com Marina no quintal, não se identifica como um depravado também, apenas como um infortunado miserável vítima das circunstâncias de sua vida passada e presente. Enquanto isso, a sombra que lhe embaçou os delírios na febre é a sombra que lhe embaçou toda a vida, mantendo-o sempre longe e distante da vida pulsante, deixando-lhe na eterna modorra, quebrada apenas pela agitação mental do romance com Marina e pelo crime que vem a cometer, em parte por ela, mas ainda mais por vingança contra toda a miséria que o subjugou, contra todos os folgados e inúteis Julião Tavares que lhe cruzaram o caminho, tomando seu lugar, empurrando-o para a mesa do canto do café.




BIBLIOGRAFIA

KIERKEGAARD, Søren A. Der Begriff Angst, Vorworte. Düsseldorf: Eugen Diederichs Verlag, 1952. [Trad. Iuri Andréas Reblin. In: Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia Volume 16, mai.-ago. de 2008]

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Trad. Márcia de Sá Cavalcanti Schuback. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2009.

RAMOS, Graciliano. Angústia. Rio de Janeiro: Record, 2011. Edição comemorativa.

SANTIAGO. Silviano. “Posfácio”. In: RAMOS, Graciliano. Angústia. Rio de Janeiro: Record, 2011. Edição comemorativa.

SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. Trad. Paulo Perdigão. Petrópolis: Ed. Vozes, 2001.





48 comentários:

  1. Dificil para ume leitora, meio Amélia como eu entender, mas que legal que hà comentàrios assim, ampliam horizontes, dão uma outra perspectiva de leitura. Cybèle

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    1. Obrigado pela leitura Cybèle. Mas peço desculpas se o texto ficou complicado, não foi minha intenção; pelo contrário, queria apenas mostrar outra visão do romance, além das que já foram apresentadas.

      Quanto ao "meio Amélia", você não me parece o tipo, rs!

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  2. Parabéns, William. Muito bacana sua análise. Eu gosto muito desse diálogo entre a filosofia e a literatura, é enriquecedor. Você e Dília precisam se conhecer e trocar mais figurinhas. Ainda não a ouvi sobre "Angústia" com A maiúsculo, mas já debatemos muito a angústia em si, entre copos de vinho, Kierkegaard, queijos, Heidegger, copos de vinho ... agora entram o Graça e novos convidados, todos bem-vindos. Quem sabe um outro diálogo em volta da fogueira?

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    1. Obrigado, Rita. Fico feliz que tenha gostado.

      Sobre a Dília e uma fogueira para debatermos esses temas, seria bom. Vinho, Filosofia, Literatura, uma fogueira e um bom papo; seríamos Sócrates, suspendendo-se às nuvens, depois de algumas garrafas, rs!

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  3. Sempre muito bom te ler William (rindo da fogueira e do vinho, pois afinal de contas os simpósios na antiga Grécia eram regados a vinho e bons papos). Eita que chego a sentir a lingua meio dormente pelo que pode ser discutido e pelo acúmulo do vinho rsrsrs.

    Hoje falaste de filósofos difíceis (para mim particularmente), Heidegger, Kierkgaard e eu acrescento Hegel, poxa, seria muito bom que eu pudesse ter um ano sabático, como os religiosos, para mergulhar neles (será que sairia viva? tenho minhas dúvidas). 3 meses do primeiro e 1 mes de descanso mental; mais 3 meses do segundo e mais 1 mes de descanso e por último, 3 meses do terceiro e acho que entraria num descanso eterno sobre filosofia rsrs.

    Num determinado ponto de seu texto (não lembro qual, o que não é novidade) me veio a mente a questão da escrita angustiante, não "politicamente correta" num sentido de autoajuda, que muitos esperam e se negam a ler porque não tem esse viés consolador. Gosto quando alguns escritores estertoram literariamente porque concebo a vida não como apenas conforto, mas como desconforto também, como impossibilidade de compreensão do todo (a não ser que se possa individualizar esse todo). Deus me acuda Kierkegaard rsrsr



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    1. Helene, vou repetir o que disse no Facebook, para os que não vão lá também leiam o discutido aqui.

      É preciso também viver a angústia, assim como as dores e, portanto, falar sobre elas, afinal, fazem parte da vida. Esse negócio de tudo lindo, só mesmo em propaganda de creme dental na praia. A riqueza do mundo também está na compreensão da dor que traz a compreensão de si e do mundo. É mais ou menos disso que falam Kierkgaard e Heidegger. Pode ser catártico tanto escrever como ler sobre os males que assolam o mundo, justamente por essa compreensão do que somos ou do que o mundo é e pode ser. O sofrimento, o medo que muitos têm de ler sobre isso, seja na Literatura, seja na Filosofia ou ainda na Sociologia, não deveria existir, o aperto que se pode sentir no coração, ou a angústia que isso pode provocar na leitura será transformada em novos horizontes depois, numa mente mais aberta e menos preconceituosa quanto ao outro e a si mesmo, mais sensível ao que nos cerca, sem as maquiagens da mídia ou dos meios de comunicação como um todo. Claro que para isso, aconselho a entrar na leitura com o coração aberto, sem preconceituamentos de qualquer espécie, sabendo que vai ler a visão de outro sobre nós e o mundo. Não precisaremos daí concordar com tudo o que será lido, mas, como adultos esclarecidos e de personalidade, contestaremos algumas coisas que discordarmos, procurando um fundamento para justificar isso, e assimilaremos e incluiremos em nossos conhecimentos, e quem sabe nos diálogos e novas experiências, aquilo que julgamos correto - uma boa observação por parte do filósofo ou literato que lemos.
      Agora já chega, não é?! Já me estendi demais, rs!

      Mas isso me lembrou uma piada sobre um cara que leva uma nova conquista para um jantar. Lá, sentados à mesa, à espera da comida, o rapaz começa a falar sobre si mesmo - eu faço isso, gosto disso, já viajei para tal lugar, sou bom nisso, minha vida é tal coisa, até que ele, aparentemente percebendo que já falara muito sobre si mesmo, e sua existência no mundo, sem dar à moça a possibilidade de se expressar também, diz: "Olha, já fazem uns trinta minutos que só falo de mim. Já chega, não é?! Vamos parar um pouco. Agora fale você de mim!".

      Um abraço Helene, e obrigado pela leitura!

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  4. Seu texto é lìmpido. Eu é que não sou conhecedora dos fil{osofos citados, mas foi bom pq deu vontade de saber mais. Aliàs as conversas estão rendendo. Tomara q vc escreva mais vezes sobre os livros que lhe agradarem. Tomara que a mania pegue! Cybèle

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    1. Obrigado, Cybèle!

      Eu já venho publicando alguns textos do tipo aqui no blog. Publiquei, além desse do Velho Graça, sobre o livro "Uma pena, uma saudade", da Francisca Nóbrega (http://clubedeleituraicarai.blogspot.com.br/2013/06/a-construcao-de-uma-amizade-william-lial.html), um esquema, digamos assim, sobre um conto do Novaes/ (http://clubedeleituraicarai.blogspot.com.br/2013/07/trevas-de-novaes-segundo-william-lial.html) e um ensaio publicado na revista Fórum de Literatura Brasileira Contemporânea da UFRJ sobre o livro "O estranho no corredor", do Chico Lopes (https://docs.google.com/file/d/0B4Or_Ga2ft0QZ1EwbXpHZXNkb28/edit).

      Sempre que possível compartilharei algumas ideias com o grupo. Assim trocamos impressões.

      Obrigado pela leitura, Cybèle.

      Um abraço!

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  5. Amigos, para quem estiver gostando dos textos do William Lial e quiser conhecer sua obra literária, informo que ele está me enviando seus dois livros disponíveis no mercado para venda "Noturno" (R$ 15,00) e "Mundo de Vidro" (R$ 20,00). Pedindo hoje, quem sabe, ainda chegue a tempo de entregá-los na reunião da próxima sexta-feira (13/9/2013). O frete do envio feito por ele é gratuito nessa primeira remessa, promoção da Estante do Concierge!

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  6. Sobre o Graça, eu teria uma montanha de coisas para dizer mas o espaço é pequeno, o meu tempo curto, e minha preguiça em escrever aqui, ficou enorme. Em todo caso quero agradecer-lhe a generosidade de compartilhar sua leitura com outros leitores. O encontro leitor-romance é uma experiência que torna cada leitura 'unica, e acho meio màgico ler o mesmo livro, no mesmo momento que outros leitores e poder trocar figurinhas, compartilhar uma experiência solitària. Isso seria a magia de um clube de leitores ideal.
    O seu texto reflete o que no romance o tocou. Conta um encontro entre vc e as palavras do Graciliano nas quais vc viu assuntos que lhe interessam, pensamentos e conceitos de fil'osofos que conhece. Enfim, leu com o seu universo, e isso, para mim é o que torna a sua leitura autêntica e rica, o que por sua vez me tocou e me fez refletir muito em coisas nas quais jamais teria pensado nesses termos. Fiquei curiosa com Kierkegaard e Heidegger...

    Agora, tenho uma pergunta mas nem sei se hà resposta: vc sabe se Graciliano pensou nesses fil'osofos ao escrever Ang'ustia, ou se ele se interessava pelo pensamento deles?

    De qualquer forma, tenho para mim que um livro não é o que o escritor pensou escrever, mas o que cada leitor, de fato, leu...

    Cybèle

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    1. Cybèle,

      Gostei muito quando você disse: "e acho meio mágico ler o mesmo livro, no mesmo momento que outros leitores e poder trocar figurinhas, compartilhar uma experiência solitária". É uma grande verdade esse momento em que todos estão lendo o mesmo livro, possivelmente ao mesmo tempo. Se pararmos para pensar nisso, é um momento bonito, onde todos compartilham do mesmo prazer, mas sem estarem visualmente unidos. E então vem o momento seguinte, o de "trocar figurinhas". É mesmo uma magia. Bonito seu pensamento.

      Já sobre o Graciliano ter lido esses filósofos, eu não sei se leu, mas era um homem que gostava de outras culturas, lia em outros idiomas, portanto acredito que conhecesse. Kierkegaard viveu no século XIX, e Heidegger nasceu no XIX, mas se projetou ao mundo no XX. Devido sua fama e influência no mundo, é possível que Graciliano os conhecesse. Outros filósofos, como o existencialista Sartre, também romancista, remexeram o século XX. Contudo, a influência pode vir não diretamente, com o autor pensando em escrever sobre algo ligado ao que tal filósofo disse, mas, ao sentar para escrever, inconscientemente, seu texto pode surgir influenciado pelo que já leu, desses filósofos, ou de outros autores. Além disso, já foi dito que os textos pairam sobre nós, que as ideias vagam por aí e nós, de vez em quando, pegamos uma. Por outro lado, pode ser que nunca os tenha lido e que suas ideias apenas encontrem semelhança com algo dito por outros.

      Mas outros pensadores também vão encontrar ressonância nos textos do Velho Graça, como Nietzsche, Derrida, Merleau-Ponty etc. Contudo, independente de terem sido lidos ou não pelo nosso brasileiro, é divertido e, portanto, prazeroso, vermos pontos em comum nas palavras de vários autores de diferentes áreas, isso amplia nossos horizontes.

      E você tem toda razão também quando diz: "De qualquer forma, tenho para mim que um livro não é o que o escritor pensou escrever, mas o que cada leitor, de fato, leu...". É interessante, curioso saber sobre o autor e seus gostos ou o que quis dizer com algo, mas o livro vive também como objeto único, o que ele diz é o mais importante, o que está dentro dele e que outras vozes existem nele por ele. Além disso, como você disse, há a impressão dos leitores, o que cada um sentiu ao ler. E o tipo de leitura que temos, nossa bagagem cultural, irá nos ajudar e nos levar a termos certas ideias e encontrarmos certos detalhes no livro. Cada leitor com seu enriquecimento para o texto. Assim, várias coisas influenciam na interpretação de um texto, o momento em que foi escrito, o autor, as leituras dos leitores, no entanto, tudo isso deve estar dirigido ao livro; a pessoa do autor é o menos importante. E quando publicamos algo, esse algo já não mais pertence ao seu autor.

      Para finalizar, lembrei-me de uma passagem no livro "O nome da rosa", de Umberto Eco, e vou resgatá-la para você. Trata-se de quando frei Guilherme e seu pupilo, Adson, estão na biblioteca pesquisando alfarrábios e Guilherme ver semelhanças entre os textos. Ele diz:

      "Parece-me, lendo esta página, já ter lido algumas dessas palavras, e vêm-me à mente frases quase iguais que vi algures. Parece-me, antes, que este fólio fala de alguma coisa da qual já falou nos dias passados... Mas não lembro o quê. Preciso pensar sobre isso. Quem sabe tenha que ler outros livros."
      "Como assim? Para saber o que diz um livro deveis ler outros?"
      "Às vezes pode-se proceder assim. Frequentemente os livros falam de outros livros. [..]"
      "[...] Até então pensara que todo livro falasse das coisas, humanas ou divinas, que estão fora dos livros. Percebia agora que não raro os livros falam de livros, ou seja, é como se falassem entre si" (Ed. Nova Fronteira, 2002, p. 330).

      Podemos corroborar com a ideia e dizer que quando livros falam de livros, também estão falando de coisas humanas, afinal, são humanos que os escrevem, seja com ares ou apoio divino ou não - aí vai da crença e cada um, rs.

      Desculpe-me ter me estendido.

      Um abraço, Cybèle.

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  7. Graciliano, certamente leu esses autores, penso. Era um grande leitor e estudioso. Sobre esse romance, vou citar um trecho de seu filho Ricardo Ramos: "As leituras de meu pai sempre me surpreenderam. Uma noite, cursava a faculdade e lia O HOMICIDA, de Férri. Ele chegou e perguntou o que era, mostrei, falou do livro mencionando trechos, destacando um ou outro aspecto, seguiu a conversa com Beccaria, Lombroso e Garofalo. Bem à vontade em criminologia, no humanitarismo italiano. Eu já o tinha visto assim com historia ou sociologia, mas aquilo era demais. Riu do meu espanto:
    _Você acha que eu teria feito o Luís da Silva sem estudar para isso? "

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    1. O Velho Graça era dedicado, não escreveria nada sem uma boa base para ajustar a verossimilhança de seus personagens e história - ou estória.

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  8. Graciliano, certamente leu esses autores, penso. Era um grande leitor e estudioso. Sobre esse romance, vou citar um trecho de seu filho Ricardo Ramos: "As leituras de meu pai sempre me surpreenderam. Uma noite, cursava a faculdade e lia O HOMICIDA, de Férri. Ele chegou e perguntou o que era, mostrei, falou do livro mencionando trechos, destacando um ou outro aspecto, seguiu a conversa com Beccaria, Lombroso e Garofalo. Bem à vontade em criminologia, no humanitarismo italiano. Eu já o tinha visto assim com historia ou sociologia, mas aquilo era demais. Riu do meu espanto:
    _Você acha que eu teria feito o Luís da Silva sem estudar para isso? "

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  9. Sei que o tempo de um poeta é precioso portanto eu é que fico constrangida por tomar o seu. Eu não lhe disse, mas adorei o Transeunte, muito delicadas observações.
    Obrigada pela resposta, e a dica do Nome da Rosa. Foi bom ler no seu texto de forma tão clara, mil coisas que eu vinha pensando de forma confusa, e achando que era a 'unica com tais pensamentos qdo na verdade a humanidade jà tinha pensado em tudo isso. E uma del'icia ler o que a gente pensa,isso tb parece magia. Cybèle




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    1. Não se constranja, Cybèle. De que vale nossas leituras de livros e do mundo, como também o nosso tempo, senão para trocarmos experiências.

      Quanto a ler sobre o que a gente pensa no texto de outro, é mesmo muito bom, e uma das grandes virtudes da Literatura. Quantas vezes não nos deparamos com um trecho de romance, conto, crônica ou verso de poesia que nos diz algo sobre o que já pensamos tanto. Eu sempre fico feliz, não vou negar, quando recebo, por e-mail ou pessoalmente, as palavras de alguém dizendo que ao ler um texto meu, seja poesia ou prosa, viu lá que eu dizia algo que ela sempre quis dizer, mas não sabia como, então eu disse por ela. É uma alegria, não por empáfia, orgulho intelectual massageado, não, não tenho essas veleidades, mas é uma alegria pelo fato de ver a arte, seja de sua autoria ou de outro, melhorando, mexendo, revigorando, enfim, dando voz de alguma forma a outro, fazendo parte dos dias de alguém. Isso é magia, uma magia com a qual vivo desde os oito anos de idade, quando escrevi meu primeiro poema, e com a qual vivemos nós aqui deste clube, do qual você também faz parte, Cybèle.

      Um abraço!

      PS: Cybèle, ainda não respondi ao seu outro texto que veio ao meu e-mai! por questão de tempo, mas farei isso amanhã, tudo bem?!. Não a esqueci!

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  10. Apos uma pausa no contato com o blog,encontro esta maravilha de
    postagem,uma analise muito interessante do livro.

    Parabens! Até......Ceci

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  11. Apos uma pausa no contato com o blog,encontro esta maravilha de
    postagem,uma analise muito interessante do livro.

    Parabens! Até......Ceci

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  12. William, adorei seu texto e fiquei feliz ao perceber que destacou um dos trechos mais bonitos que observei também "“Nos meses compridos daqueles invernos de serra muitas vezes fiquei tardes inteiras sentado à porta da nossa casa na vila, olhando a rua que desaparecia debaixo de um lençol branco de água em pó” (2011, p. 28, grifo meu). A cena traz solidão e desolação, vendo a rua sumir no véu da chuva, chuva que Luís descreve como “lençol branco de água em pó”. A densidade está na água que se assemelha a pó, embota a visão, turva, encobre e pesa. A água é quase sólida, é pó, e representa a vida de Luís, assombrada, sem limpidez. Por isso, seus olhos tristes já sofrem tendenciosos quanto a tudo o que presencia. Cada visão é distorcida para a sua dor da existência. No seu modo de ver, nada é claro e puro, nem mesmo a água que cai do céu." O trecho que no seu livro está na página 28 e no meu também.Chamou-me atenção a imagem dos chuviscos parecerem pontinhas de alfinetes.Todocampo semântico leva ao incômodo...Depois vai falar da pele de Marina, cheia de carocinhos(seus alfinetes a ferirem sua alma). A chuva, quando não se está bem, é lago desesperador, miserável. Esse ´um grande livro, digno de vários enfoques , como esse também filosófico que você nos deu. Só destaco algo, mesmo sendo um criminoso, não posso deixar de amar Luís, realmente uma vítima de toda uma estrutura social e psicológica. Presenciou tantas violências, largado, um bichinho solto na vida. Ele me emociona, toca profundamente. Parabéns, mais uma vez ,William! Que tal observarmos também seu papel intelectual, o de escritor?
    Elô (Helena)

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    1. Obrigado, Elô.

      Sua observação sobre a água como alfinete e a pele da Marina é muito perspicaz. Boa observação.

      Mas tenho uma dúvida: quando você diz "Que tal observarmos também seu papel intelectual, o de escritor?", está se referindo a mim ou ao Graciliano Ramos?

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  13. este coment'ario serà em 3 partes pq não coube.

    1

    Oi, Lial,
    Como vc disse, os livros conversam entre si, seja através dos autores que recorrem à referencias de outros livros- de forma consciente ou não- seja através dos leitores que ao ler, vão se lembrando de outros livros lidos, e há ainda outros caminhos para esse emaranhado de diálogos entre livros.
    Hermann Hesse dizia que a leitura é algo sagrado. Acho que ele quis dizer que há nesse ato ume espécie de comunhão que se opera entre a humanidade de todos os tempos. Aos 68 anos, ele afirmava ter lido mais de dez mil livros. Fiz as contas. Seria preciso que ele lesse uns 14 livros por mês a partir dos 8 anos de idade. Se um cidadão comum ler 4 livros por mês (média de leitura do Francês) a partir dos 8 anos de idade, ele terá lido aos 68 anos, 2 880 livros. Eu que li muitíssimo menos, acho que terei lido aos 68, uns 1 300. De forma que não sentirei essa dimensão do sagrado que deve ter sentido Hesse e tantos outros intelectuais. Mesmo assim, creio ter uma pequena frestinha dessa sensação, em alguns momentos de leitura.
    Enquanto eu lia Angústia, como quase sempre me acontece qdo leio, pensei em outros livros que me cercaram. A empregada de Luís com seu papagaio, sua mania de observar os navios que partem ou que chegam, sua necessidade de memorizar a lista de passageiros de viagens que ela mesma nunca fará, me lembrou inevitavelmente Robinson Crusoé, parece uma piscadela suavemente irônica que o autor faz, talvez, a uma das suas leituras de infância. Essa mesma empregada tem tb a divertida, estranha e comovente mania de enterrar suas pobres economias no quintal. Enterra seu tesouro feito um pirata isolado numa ilha, depois, a cada mês, tem que achá-lo no exato mesmo lugar, contar e recontar seu pecúlio. E claro, essa estória de desenterrar tesouro trouxe-me à mente A Ilha do Tesouro.
    E tem mais memórias de leituras que me ocorreram: a necessidade que Luís, muito precavido, tem de lavar as mãos várias vezes por dia. Caso ele seja preso, lavar as mãos seria a única regalia que pediria; com o resto, ele se acomodaria. Vi nisso mais uma piscadela irônica à Lady Macbeth que, morta de remorso ou culpa pelo crime cometido, fica esfregando as mãos com a sensação que há uma mancha de sangue que nunca sairá. Cybèle (Fim da primeira parte)

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  14. Segunda parte

    A cena da corda, por sinal hilária, o diálogo entre Luís e seu Ivo quando este oferece a corda de presente em agradecimento pelo prato de comida, e Luís fica P. da vida, me lembrou O Nariz de Gogol. Essa idéia de um equívoco pq uma pessoa acha que a outra lhe quer algum mal qdo na verdade tudo não passa de fantasia, e cria uma troca de frases muito engraçadas entre ambas me divertiu muito em ambos os autores. Há a mesma coloração humorística.
    Aliás, ao contrário de muitos, não senti tanta angústia com o belíssimo romance do Graciliano, muitas vezes ri, achei o personagem Luís muitas vezes involuntariamente divertido, tragi-cômico, até mesmo pelo linguajar utilisado e não somente pelas situações em si. Luís tem algo de infantil nas suas raivas e desejos que o torna cativante, e engraçado.
    Não vou nem comentar a beleza da língua, a poética de Graciliano é de dar vontade de gritar: eu amo o Brasil!!! (piegas, eu sei.)
    E tem uma coincidência que na hora me pareceu extraordinária, mas que agora me parece meio tola. Trata-se da maneira como a arma do crime foi parar nas mãos do criminoso. A corda foi parar no bolso de Luís de forma tão casual quanto o revolver no do Meursault (personagem principal do Estrangeiro de Camus). Não houvesse a arma, insinua-se em ambos os romances, no do Graça como no do Camus, não haveria crime. No do Graça o crime ocorre de noite, e a noite com sua densa neblina tem grande importância na cena, no do Camus a cena do crime é diurna, e o sol tem decisiva importância na cena do crime. Enfim, eu pensei em mais blá blá blás...mas o fôlego acabou.

    Abraços, Lial.

    Cybèle (o pro'ximo serà um PS)

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  15. Longo PS : Cada um tem seu nível de cultura e saber, não é mesmo? Lial, fui tentar ler ‘’’Le Concept de l’Angoisse’’ do Kierkegaard, e quase morri! Não de angústia, mas por perceber o tamanho da minha ignorância. Para ler este, é preciso uma super pré-cultura, uma grande bagagem de pré-leituras, e eu estou numa fase ainda pré-histórica. Bom, mesmo assim, fui lendo, não com a razão, mas com a intuição. Fui lendo as palavras, frases...e adorei que tudo começe com Adão, pelo menos essa parte da Bíblia eu li, e adoro. Acho a Bíblia um belo livro, adoro os mitos, e gosto qdo falam do pecado de Adão, adoro tb o crime de Caím, mas deste acho que o Kierkegaard não vai falar. Procurando leituras em torno dos seus comentários descobri um livro cujo título me encantou: Acheminement vers la Parole do Heidegger por ser um assunto que me toca, nem sei bem o porquê. Cybèle.

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    1. É, Cibèle, o Kierkegaad usa a Blíblia para as suas ponderações, e segue falando do tédio e do que ele vai gerando, e acaba falando também em Caim.

      Para ler filósofos, principalmente alguns mais densos, digamos assim, é mesmo preciso de certa bagagem, mas não é necessário ler dez mil livros. Na verdade, para ler qualquer autor, filósofo, sociólogo, literato etc. de bom nível é preciso de alguma bagagem para compreender o máximo possível do texto; algumas pessoas com menos conhecimento vão ler certos livros e ficar apenas na superfície do tema, sem se aprofundar e perceber certa nuance da linguagem, da forma, da relação com outras obras ou com a história, e mesmo do tema. Então uma bagagem cultural ajuda sim. Mas você, pelo que já escreveu aqui nesse nosso diálogo, tem uma boa bagagem, senão não teria citado e conseguido comparar a obra de Graciliano com grandes momentos de autores da Literatura mundial como Gogol, Camus e Shakespeare. E isso não é um elogio, é uma constatação clara.


      Quanto a essa observação entre a noite de neblina de Luís e o dia com o sol que ofusca, de Mersault, foi muito boa. Faz todo o sentido. Sem a arma no dado momento, nada haveria acontecido, e a neblina e o sol são fatores semelhantes no ato do crime. Aliás, como curiosidade, lembrei agora que tenho um poema, publicado no meu segundo livro, "Noturno", e escrito há muito, muito tempo, que faz referência ao senhor Mersault. Se quiser conhecê-lo ele está também no meu blog, neste endereço: http://williamlial.blogspot.com.br/2007/05/estrangeiro.html.

      Para encerrar, esses dez mil livros do Hesse são mesmo uma boa quantidade. Não sei se chegarei a eles. Alguns meses chego a ler vinte livros, outros só leio quatro ou cinco, depende também do volume de páginas e do meu tempo; e como tenho quarenta anos de idade, veremos aonde chagarei. Mas como disse antes, para uma exemplar cultura não é necessário os dez mil livros. Mil, quinhentos até, já é um bom número, desde que sejam bons livros, pelo menos para aquilo que se almeja com eles, e que sejam compreendidos e discutidos, mesmo que consigo mesmo, em monólogos. Como disse certa vez Schopenhauer, você precisa de um tempo para maturar a leitura anterior antes de entrar em outra. E disse também, em "A Arte de Escrever", que

      "[...] o excesso de leitura tira do espírito toda a elasticidade [...]. O meio mais seguro para não possuir nenhum pensamento próprio é pegar um livro nas mãos a cada minuto livre. Essa prática explica por que a erudição torna a maioria dos homens ainda mais pobres de espírito e simplórios do que são por natureza, privando também seus escritos de todo e qualquer êxito".

      Schopenhauer fala aqui de excessos, daqueles que leem tão compulsivamente, e seguidamente, sem deixar espaço para terem suas próprias ideias. Não que você não possa ler dez mil livros, mas que saiba retirar deles a compreensão e formar seu próprio pensamento, e não simplesmente copiar e aceitar o pensamento do outro. É preciso parar e raciocinar sobre o que leu. A leitura deve ser seguida de um momento de reflexão sobre ela; caso contrário, nada se guardará. Eu, William, Will ou Lial para alguns, Lord para os engraçados que assim me apelidaram no tempo da faculdade e que teimavam em me comparar aos ingleses, enfim, eu, como eu dizia, antes de ser bruscamente interrompido por mim mesmo, leio muito, mas sempre paro para refletir sobre o que acabei de ler. E também tenho um detalhe, eu escrevo sobre todos os livros que leio. Para todos os livros que já li na vida há um pequeno texto meu sobre ele no meu catalogador de livros. Como dizem meus amigos, os mesmos que me deram o apelido inglês engraçado, "William, não sei o que é, mas não muito normal não". Intriga da oposição, claro, mas eu não ligo, minha mãe parou de dizer que eu vim de Marte quando eu tinha vinte e um anos, possivelmente achou que era inútil continuar acreditando na cegonha marciana.

      Um abraço, Cybèle, e obrigado pela leitura do meu poema "O transeunte". Fico feliz que tenha gostado.

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  16. Lial, falo do papel de escritor de Luís, das observações que ele faz sobre o discurso do intelectual, da linguagem , o que na verdade é também de Graciliano. Sabem, ele não aceitava lá muito bem o uso do engajamento nas artes.No entanto, sua obra faz mais pelo ser humano que a de outros que tiveram a intenção mais clara. Lial, na pag. 165, há trechos que representam bem a estrutura social, um microcosmo que reflete o macro, sobre o comodismo,o sossego que impede a transformação. "Bocejo e sapeco uma literatura ordinária, constrangido." O PC cobrava essa participação dos seus escritores membros.Mas Graça, foi bem mais além.Ambos os lados , direita esquerda, fazem isso com seus escritores.Mas a Arte deve ou deveria ser livre. Isso , é altamente discutível, não lhe parece? E o final é bem expressivo"Que baralho, que revolução será capaz de perturbar esta serenidade?" Considerando os interesses dos estabelecidos rsrs Graciliano tinha mesmo de ser preso, era um perigo!!rs Carlos Prestes não se fazia de vítima e dizia mais ou menos isto: o que fizeram conosco, nós faríamos com eles também."
    Portanto, não esperemos que os de direita façam aquilo que esperam os de esquerda. Isso, digo eu.

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    1. É verdade, Elô. Há mesmo essa questão da Literatura na voz de Luís da Silva; um comentário sobre a arte engajada, que almeja uma participação política, que almeja educar para um direcionamento, enfim, guiar e convencer.

      Muito boa a sua colocação!

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  17. William! Que bom que pela frente vou encontrar Caim. Ainda não chegeuei nesse ponto, estou lendo outro livro ao mesmo tempo. Por falta de bagagem, no caso do Kierkegaard, vou ler pulando trechos, ler de forma diletante só para sentir o gostinho do mistério. Que legal que vc gostou da ideia do Meursault! Pensei em mais coisas, se der escrevo, ou melhor se não der preguiça. Sou preguiçosa demais. Acho que gosto mesmo é de ficar mazanzando numa rede com um bom livro. Ou decifrando frases misteriosas...
    Fiquei pensando...
    Frases misteriosas soam como fórmulas mágicas, contêm um tesouro com a condição de desvendarmos seu enigma. Há frases das quais gostamos pelo mistério que emana delas mais do que pelo sentido em si, muitas vezes absconso. Frases que ficamos relendo, lendo em torno, e um dia o mistério se desvenda, e o tesouro surge. Compreendemos.
    Vc trouxe no seu belo texto sobre Angústia de Graciliano, algumas que acrescento ao meu repertório de frases envoltas em mistério:
    - [...] A realidade do espírito mostra-se continuamente como uma forma que atrai sua possibilidade, todavia ela desaparece, tão logo que essa a agarra; é um nada, que nada pode, a não ser, angustiar. Mais ela não pode, enquanto ela meramente se mostra (KIERKEGAARD, 1952, p. 39).
    - A angústia se angustia pelo próprio ser-no-mundo. [...]. O mundo não é mais capaz de oferecer alguma coisa nem sequer a co-presença dos outros. A angústia retira, pois, do ser-aí a possibilidade de, na decadência, compreender a si mesmo a partir do mundo e na interpretação pública (1986, §40, p.254).
    Ave Maria!
    Mas é pelo mistério que o mundo se amplia, que ascendemos a novas dimensões. Portanto, obrigada, William!
    Cybèle

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  18. Angústia?

    Vi em Angústia muito humor de grande sutileza. Vi também a crítica social, as observações das camadas sociais, das relações entre elas, mas isto não me pareceu essencial, embora importante. Senti a força da violência animalesca entre os Homens, o erotismo, a sensualidade dos personagens, a brutalidade da miséria, o absurdo da pantomima social onde, por exemplo, ricos ignorantes podem se expressar nos jornais, e intelectuais pobres podem ser apenas sombras sem voz própria.
    E sobretudo, senti a poesia. A beleza das frases, a construção sintáxica que é a voz do autor se sobrepondo a do personagem-narrador, e significando algo além do que este último narra. O humor que o personagem-narrador não tem mas que surge das frases e do vocabulário utilizados, fazendo com que o personagem-narrador surja engraçado involuntáriamente (não vou exemplificar senão esse texto fica interminável...)
    Mas angústia, apesar do título, não foi o que mais senti.
    Só senti mesmo certa angústia quando Luís segue desvairado, feito um boneco, um soldado marchando sob o comando de outro “um, dois, um, dois’’, o insuportável Julião, noite enevoada afora. Como Julião foi apresentado como um gorduroso imbecil, não pude torcer por ele, mas não queria que o Luís se metesse numa baita encrenca por causa daquele boçal. Logo torci pelo criminoso, muito mais simpático. Primeiro tremi por ele, e torci para que ele não cometesse a loucura de matar; uma vez o crime cometido, torci para que ele não deixasse nenhum vestígio (chapéu, papeis, testemunhas que o reconhecessem etc.), enfim torci muito pelo assassino. E em nenhum momento pensei que ele fosse um assassino, um criminoso. Ele era a vítima, e o seria duplamente se fosse pego e encarcerado. Não é uma loucura o que um hábil discurso pode fazer com nosso senso moral?
    William, adoro as suas respostas às minhas logorreias. O que vc escre tem sido inspirador.
    Um abraço!
    Cybèle

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    1. Cybèle,

      Também vejo poesia no texto de "Angústia". Muitos críticos dizem que o texto é seco não tem poesia. Discordo. Tem sua secura sim, mas há momentos, há frases inclusive, poéticas, como "Nunca embarcou, sempre viveu em Maceió, mas tem o espírito cheio de barcos" (p.42),"nas luzes que espirravam das travessas a figura surgia" (p. 192), além de passagens de imagem poética.

      E sobre torcer por Luís, é mesmo a força do texto, tive o mesmo desejo de que ele não esquecesse nada no local que o incriminasse.

      Obrigado pelos elogios!

      Um abraço!

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  19. Graça influênciou Camus? (PARTE 1/3)

    Volto com mais coisas que me passaram pela cabeça sobre a angústia, sentimento que para mim começa logo antes do crime, e continua depois deste quando, tanto o personagem qto eu, leitora, sentimos medo que algém venha prender Luís.
    Elementos em torno do crime, fazem aflorar a angústia de Luís até o paroxismo. Estes elementos são de ordem climática e fisiológica, ou até neurológica, que se interpenetram, que se influem ums aos outros.
    Voltando ao assunto ‘’momento em que o crime ocorre’’, e a importancia da noite, encontrei esse trechinho que confirma que o crime não poderia ser de dia:
    ‘’Se me achasse diante de Julião Tavares à luz do dia, talvez o ódio não fosse tão grande. Sentir-me- ia miúdo e perturbado, os músculos se relaxariam, a coluna vertebral se inclinaria para a frente, ocupar-me-ia em meter nas calças a camisa entufada na barriga. Afastar-me-ia precipitadamente, como um bicho inferior. Agora tudo mudava. Julião Tavares era uma sombra, sem olhos, sem boca, sem roupa, sombra que se dissipava na poeira de água.’’
    Outros elementos essencias são narrados no trecho que antecede o crime.
    A noite, claro, mas tb a neblina que faz Julião parecer flutuar, andar com facilidade pela vida (o que já irritava Luís em outro momento do romance); o frio, as gotas de orvalho ou neblina que fazem Luís ficar mais agitado e o propulsiona para a frente fazendo-o andar mais rápido, que influi nos movimentos do seu corpo. A falta de cigarro e a vontade de fumar que o enerva (ele coloca várias vezes as mãos nos bolsos a procura dos cigarros e sente a corda, a arma do crime). Enfim, além do momento, da arma do crime, há uma série de fatores físicos. A minúcia da descrição do estado do criminoso e do que o cerca, da influência entre mundo exterior e o que se passsa no corpo do assassino, pareceu-me digna de um relatório de perito. Será que nosso Graciliano leu laudos de perícia criminalista, laudos de psiquiatras, processos etc? Em todo caso estou embasbacada com tamanha imaginação e tanta precisão. É o que dá profunda verossimilhança a esta cena tornada incrivelmente linda- ouso dizer- graças à prosa do autor.
    Cybèle

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  20. Graça influênciou Camus? (PARTE 2/3)

    Esse grau de descrição das influências entre o mundo exterior e as sensações internas do assassino é o mesmo que encontrei em o Estrangeiro do Camus. Reli ambos os trechos. E vi mais uma coincidência que achei interessante: as quatro pancadas depois da morte.
    No caso de Meursault, trata-se de quatro tiros dados por ele sobre o corpo da vítima, já morta por um primeiro tiro. A primeira parte do Estrangeiro termina com as seguintes palavras: ‘’Et c’était comme quatre coups brefs que je frappais sur la porte du malheur.’’ (tradução capenga minha: ‘’E foi como se eu tivesse dado quatro beves pancadas na porta da infelicidade.’’ )
    Quatro breves pancadas...Um professor meu, disse que via nessas quatro pancadas a quinta sinfonia de Beethovem ‘’a morte batendo à porta’’ que começa com um ataque de quatro : tam tam tam tam! Não tenho vocabulário musical para expressar isso!
    No caso do Luís, duas horas depois do crime (o crime ocorreu lá pelas duas da manhã), quando ele já está em sua casa, ele pensa ter ouvido alguém batendo na porta (ele teme que a polícia o encontre) e temos as seguintes frases: ‘’ Teriam realmente batido na porta? (...) Quem teria batido? (...) O relógio bateu meia hora e depois quatro. Não me lembro ter feito nenhum movimento na derradeira meia hora, mas quando veio a primeira pancada eu estava em pé, quando soaram as quatro estava sentado, o queixo encostado à mesa.’’
    Parece até que Camus condensou, sintetizou e deu uma outra forma às pancadas de Graciliano. Não sei se é muita viagem minha.
    Cybèle

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  21. Graça influênciou Camus? (PARTE 3/3)

    Sei que é meio absurdo, mas é uma dessas estranhas coincidências que me encantam, e até me pergunto se o Camus que publicou o Estrangeiro em 1942 não teria lido Angústia (1936) do grande Graciliano e se inspirado imensamente. Camus esteve no Brasil, se não me engano, em 1949. Mas pq veio ao Brasil? Ele conhecia nossa literatura? Ele era de esquerda, acho, será que conheceu nossos intelectuais de esquerda e ouviu falar no Graça? Quando será que foi a primeira tradução de Angústia para o francês, eu soube de uma em 1989, acho, mas não sei se houve anteriores. O que sei é que li um romance do Camus, que ele jamais teria publicado, mas que após sua morte, a esposa viúva publicou. Trata-se de La Mort Heureuse (A Morte Feliz) que é uma prefiguração do que viria a ser o Estrangeiro. Este romance, se me lembro bem, foi escrito qdo ele ainda morava na Argélia. O personagem já se chamava Meursault, e há muitos trechos que são indênticos aos do Estrangeiro. Este romance é muito mais longo e explicativo do que o Estrangeiro que óbviamente é um aperfeiçoamento, um amadurecimento do primeiro, e é muito interessante ter acesso à este processo criativo, a esta evolução da estética e pensamento de um autor. Bom, mas o que eu queria mesmo dizer é que nesta prefiguração do Estrangeiro há um crime absurdo, gratuito de certa forma, embora haja dinheiro envolvido, mas não ódio, só que tudo é completamente diferente do crime no Estrangeiro, muito menos hábil, até inverossímil. Não vou contar para não tirar a surpresa caso vc queira lê-lo. É só para dizer que as idéias do crime que são similares nos dois romances não se encontram na versão mais antiga, e o crime, a forma como se deu, parece-me, foi o que colocou o romance do Camus no caminho certo. Seu A Morte Feliz jamais teria alcançado a notoriedade do Estrangeiro, seria um romance menor. Se o Graciliano o influênciou mesmo, seria interessante saber pq isto o coloca na história da literatura de outra forma, e não há pq apagar, ou deixar na neblina este vestígio da história das influências literárias.
    Mas como eu disse, pode ser delírio absurdo. Deve ser minha paixão pelo Graciliano, que realmente é um dos maiores do mundo, e para mim, mesmo tendo lido pouco, não duvido que Vidas Secas seja uma das maiores obras literárias da humanidade.
    Falei demais como sempre, não tomo jeito. (risos)
    Um abraço, William! Acho que o proximo livro é um do Moravia que não vou ler pq tenho outros no momento me interessando mais. Até uma pr’oxima conversa em torno de alguma obra interessante!

    Cybèle

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  22. Prezado William, parodiando o título da Clarice "Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres", ler você é, para mim, um grande prazer e uma enorme aprendizagem. Eu, que passei mais da metade de minha existência envolvida com números, cálculos e cifras, embora sentisse, sempre, a sedução da palavra (roubando, também, título de Affonso Romano de Sant'Anna), agradeço ao CLIC a oportunidade de ler excelentes livros e, a você, um dos meus grandes mestres nesta etapa da vida, por ensinar-me a lê-los e a interpretá-los. Sempre é tempo. Nesta oportunidade, estou encomendando ao Evandro seus dois livros "Noturno" e "Mundo de
    Vidro". Quero aprender mais!
    Abraços gratos e quase octogenários.
    Elenir

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    1. Elenir, sou mestre apenas no que consta no meu diploma de mestrado, rs.

      Mas muito obrigado pela sua consideração pelos meus textos, que bom que eles lhe dizem algo. E muito obrigado também por querer ler meus livros. Na verdade, publiquei três, mas somente dois estão ainda disponíveis.

      Um abraço!

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  23. Excelente debate protagonizado por nossos cliceanos virtuais Lial e Cybèle!

    Segundo alguns participantes do nosso clube de leitura presentes na reunião da última sexta feira, considerando o aspecto extremadamente psicológico do romance "Angústia" de Graciliano Ramos, pode ser que Julião não tenha sido morto por Luis da Silva, que é tudo fruto de sua mente fantasiosa.

    Outro ponto interessante surgido no debate é a visão alternativa sobre Julião Tavares, altamente lisonjeira, pois alça-o ao honroso posto de simbolizar a Literatura, que chega na vida das pessoas e põe tudo de pernas para o ar, muda a ordem dos acontecimentos, a visão do mundo das pessoas.

    Essas foram apenas duas das inúmeras questões levantadas durante nosso debate.

    O que vocês acham dessas interpretações dadas por participantes do debate na Livraria Icaraí?

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  24. Quanto às recentes observações sobre "Angústia".
    (Imitando a Cibèle, vou dividir meu texto em duas partes porque não caberia numa só, o que é muito desagradável - fica aqui o meu protesto ao Blogger, do qual também sou usuário; e que ele não me expulse por isso!)

    Sobre a morte de Julião, é uma forma de pensar, a não realização do assassinato, contudo, não há nada no livro que possa nos dirigir para o não assassinato. Não podemos traçar caminhos que não constam no livro, tentar adivinhar o que estaria fora do texto. Somente o texto pode nos dizer algo, nada fora dele. Já quanto à analogia do Julião com a Literatura, é bonita, interessante e faz sentido, se quisermos tratar o texto como metáfora da Literatura, uma forma blanchotiana de crítica.

    Na análise de uma obra é permitido fazer muita coisa, inclusive usar o texto inteiro ou partes dele como metáfora de algo porque queremos fazer isso, e Maurice Blanchot já fez muito. Contudo, se quisermos fazer uma análise baseada no tema do livro propriamente, Julião era a representação da burguesia, do mau-caráter, do folgado, do opressor e do aproveitador, farsante e metido.

    Sua figura pode assemelhar-se sim à Literatura que bota tudo de pernas para o ar, mas também, nessa visão, poderia assemelhar-se à Filosofia que coloca mais ainda as pessoas de pernas para o ar e muda sua visão de mundo; basta lermos Nietzsche, Heidegger, Agamben, Schopenhauer, Adorno e tantos outros para nos vermos com a visão mudada ou, no mínimo, bagunçada. Então, o fato de Julião aparecer e colocar tudo de pernas para o ar não seria motivo para representar a Literatura, já que isso ocorre também com outras letras, além de nem todos mudar a visão de mundo com a Literatura. Contudo, repito em outras palavras, colocar Julião como exemplo da Literatura não deixa de ser uma forma possível de vê-lo, mas por uma questão de querer dar esse tom, essa possibilidade ao texto, que se assemelha a usar a chuva como metáfora das lágrimas de Deus; sabemos que a chuva não é as lágrimas Deus que chora, mas podemos dar esse toque poético a ela. Assim é com a análise de um texto, podemos vê-lo de diversas formas, e muitas são aceitas e plausíveis, outros fogem ao tema e à estrutura do texto; com diz Umberto Eco e alguns outros críticos, devemos ouvir o que o texto nos diz, e acrescento, com as palavras que estão nele, e não com as que imaginamos além da leitura; é como imaginar se o homem que fugiu ao final do livro foi preso ou não; o livro acabou, não há mais história, o homem não foi preso.

    Concluo esse ponto, na minha visão, claro: Julião como metáfora da Literatura, sim, é uma forma particular ou propositada de vê-lo, mas não que isso esteja no texto de Graciliano. É uma forma periférica, extratexto de ver o personagem.

    ----- Fim da primeira parte (espero vocês na segunda - parte, não o dia) -----

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  25. ----- Início da segunda e última parte (obrigado por virem!) -----

    Agora, continuando com Julião, mas voltando à sua morte, a meu ver, o texto nos diz que Luís matou Julião. Se nos dirigirmos ao texto, na página 220 da edição comemorativa, na casa vizinha, a casa de Marina, acontece um alvoroço, e o texto nos diz, para corroborar com a ideia da morte: "Um rebuliço na casa de seu Ramalho. Fui encostar-me à parede. Gritos, o cabo de vassoura batendo no chão, risos nervosos e a fala morna de d. Adélia: — Quem faz neste mundo paga é aqui mesmo. Quando Deus tarda, vem a caminho". E claro, alguém pode pensar, mas isso pode ser também da cabeça de Luís. Contudo, se observarmos a estrutura formal do texto, que muito importa, quando Graciliano Ramos quer reproduzir uma frase da cabeça de Luís, uma reprodução de um diálogo na boca dele, não usa travessão, apenas aspas. Portanto, acredito que as palavras de d. Adélia sejam reais. No mais, todos os críticos e ensaístas importantes que li sobre esse livro até hoje, de vinte e sete a trinta, nem sequer vislumbram a hipótese do não assassinato, assim como o Velho Graça, até onde sei, jamais comentou essa hipótese — para aqueles que gostam de ouvir o que o autor diz. Então, não vejo porque a morte não teria acontecido. Mas quero deixar claro que respeito outros pontos de vista — quem sou eu para negar a visão de alguém, não sou mais leitor do que ninguém aqui —, apenas peço para nos atermos ao texto e não ao que podemos supor fora dele.

    Mas é bom toda essa discussão. Enxergamos outros caminhos, outras teorias, então fundamentamos o que julgamos ver, ou vimos de fato — afinal, sem fundamentar, nossas ideias não tem valor, não passam de suposições — e abrimos novas discussões. Assim, peço perdão se alguém discordar de mim, e por ventura, ou desventura, sentir-se ofendido com a minha discordância, mas o mundo seria insuportável se todos vissem a mesma coisa do mesmo jeito, ao contrário do que podem pensar aqueles personagens de filmes politicamente corretos com seus apreciadores do paraíso post-mortem onde todos dizem sim — esses, com certeza não somos nós; além do mais, não se progride sem contrapropostas. Dito isso, meus gentis amigos do clube, voltei a falar de Angústia, depois de já tanto ter escrito ¬— vocês já não devem me aguentar mais — apenas para expor a minha visão do agora discutido, segundo os traços que acredito ter visto no texto.

    Um abraço a todos e tenham uma boa semana — sem angústias!

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  26. "Julião era a representação da burguesia, do mau-caráter, do folgado, do opressor e do aproveitador, farsante e metido."
    Isso foi mais que suficiente para sua morte no livro. E se Graciliano leu O Homicida, não foi em vão.
    William, estou com vc. Mais uma vez ,parabéns! Isso de falar do que está no texto, é coisa que a Linguística frisa bastante. Mas o que ela pode fazer com as lacunas, o computador não vê , somente a sensibilidade...O que não se diz muitas vezes é inferido. Mas há sempre os índices, não é? Um belo livro , uma bela discussão!
    Abraços

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  27. A resposta do Lial, muito esclarecedora, me confirmou na minha mania de achar que a solução para todos os enigmas de um romance, ou quase, está na sua estrutura. Isto me animou a falar também muito embora, nem de longe, eu tenha o preparo ou a cultura que ele tem, óbvio. E minha conversa aqui é totalmente empírica, de leitora leiga. Como sempre disse no clube, acredito que seja enriquecedor que pessoas de níveis de preparo diferentes, especialidades diferentes se expressem e brinquem com o universo literário que é, antes de mais nada, algo de lúdico. Creio que a literatura seja o portal do imaginário tanto para aqueles que se aventuram a escrever qto para os que ficam felizes em ler, é espaço para os devaneios mais loucos, para sonhos, em suma, para a inspiração que é o céu da inteligência.
    Seria muito bom que outros leitores, talvez membros virtuais do clube, participassem nem que fosse com poucas palavras – afinal, como todo mundo, temos nossas diversas ocupações, eu mesma, por exemplo terei que parar por aqui (imagino a galera dizendo: graças a Deus! risos). Toda contribuição é interessante. Fiquei curiosa com a promessa da Dília em propor uma interpretação filosófica, por exemplo. Para que os virtuais tb aproveitem, ela bem que poderia dedicar nem que fosse um parágrafo para dizer por alto sua visão de um escritor tão importante de um país que a acolheu.

    Mas enfim, ai vai meu pitaco número 2 (serão mais seis pitaquinhos):
    Cybèle.

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  28. PITACO 2/7
    Primeiro gostaria de dizer, mais uma vez, o qto adorei a língua de Graciliano. Romance complexo, belo, e insisto, com uma musicalidade verbal cheia de relevos e cores devida, em parte, ao vocabulário. Seria uma musicalidade atonal no sentido da música erudita contemporânea, talvez, mas musicalidade. Ouso discordar do Otto Maria Carpeaux que disse, no posfácio da minha edição, que ‘’O lirismo de Graciliano (...) não tem nada de musical, nada do desejo de dissolver em canto o mundo das coisas. ’’ pois vi, ouvi, senti o canto, e que canto! Graciliano parece estar cantando o mundo dissolvendo-se na mente de um homem caindo em loucura.
    Teria muitas e muitas coisas a dizer sobre Angústia como provavelmente qualquer leitor, mas não sei devanear tanto assim, necessito encontrar vínculo entre arte e realidade, o que é, talvez, a pior das ilusões. Talvez nem uma coisa nem outra exista separadamente para o ser humano. Mas enfim, para ser breve, tenho a mesma opinião que o Lial, acredito sim que o crime tenha sido cometido, que isto está na trama. Mas todo livro rico permite inúmeras interpretações, e a minha é apenas mais uma, embora eu tenha ficado muito curiosa com a do clube que me fez pensar em muitas coisas, e isto é positivo numa troca de impressões de leitura.
    Cybèle

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  29. PITACO 3/7
    Mas vamos primeiro para o fim do romance. No fim do romance, Luís está delirante e vê pessoas do passado se juntarem a ele na cama. Na penúltima frase do romance, ele diz ‘’íamos descansar’’. Poderíamos acrescentar ‘’em paz’’, que significa morrer. Eu pensei nisso qdo li, e levada pelo turbilhão da leitura, esqueci o início, temporariamente. Senti mesmo como se o personagem que acompanhei durante tantas páginas estivesse morrendo. Fiquei até meio triste. Aí lembrei do começo. E feliz que a estória não estivesse acabada, voltei para o início. Foi como uma ressureição do personagem, só que em vez de 3 dias depois, foram 30 dias depois (para mim o Graciliano é cheio de insinuações muito sutis. Como qdo, em outro trecho, ele diz que as meninas cantavam para o balão não cair. Quem de nós, leitores, ao ler isso não cantarolou baixinho a musiquinha tão popular, ‘’cai, cai balão(...)não cai não, não cai não...’’etc ? Não sei outros leitores, mas eu cantarolei. Ele pede muitas vezes que completemos frases ou expressões: vejo, por exemplo, na frase chuva em pó, surgir em filigana a expressão sabão em pó. Claro, devo aqui me perguntar algo fundamentalíssimo: havia sabão em pó qdo Graça escreveu esse romance? De qualquer forma, a água que lava, que limpa tudo parece-me bastante presente no romance.
    Em dado momento, Luís diz: ‘’ A água lava tudo, as feridas mais graves cicatrizam.’’p 107 ed Reccord, 1980.
    Pode ser alucinação minha achar que Graciliano nos convida a completar frases ou deduzir expressões, mas já que estamos interpretando, vamos lá.
    Cybèle.

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  30. PITACO 4/7 (Atenção, este é um super pitaco...)
    Bem, como voltei para o início do romance e tive o prazer da ressureição de um personagem que imaginei moribundo, continuei lendo. E ai, algo incrível aconteceu, vi que a estória fugia para outro lugar, que ela não era tão circular assim. Nosso personagem matou, matou mesmo, e vai matar de novo. A circularidade vai cessar em algum momento. Está preto no branco. Vi isso na cena em que Luís está escrevendo um artigo e está chovendo, ele deve estar na sala da sua casa, em todo caso tem vista para o quintal. A chuva é intensa e ele imagina Marina nua se banhando ali, mas invisível por causa da densidade da chuva: ‘’Este pensamento esquisito (...) bole comigo durante alguns minutos.’’Depois ele se lembra que gostava de tomar banho de chuva qdo criança, pegava num cabo de vassoura e pererê, pererê, pererê. Desta lembrança vai para outra, a do Poço da Pedra onde o seu pai o jogava no fundo, o deixava imerso quase se afogando, depois o tirava da água para recomeçar a tortura (não é de se admirar que o menino Luís não tenha podido chorar a morte do pai.). Desta lembrança, Luís vai para o imaginário: ‘’ Se eu pudesse fazer o mesmo com Marina, afogá-la devagar, trazendo-a para a superfície quando ela estivesse perdendo o fôlego, prolongar o suplício um dia inteiro...’’ Parece haver nesse desejo algo de erótico, mas não será justamente isto que leva criminosos passionais a matar, ou criminosos em serie a repetir a dose?
    Cybèle

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  31. PITACO 5/7
    Esses 3 pontinhos (acho que há poucos pontos de suspensão no romance) parecem sugerir continuação. Se numa primeira leitura do romance, esse detalhe pode passar despercebido, já na segunda, ele salta aos olhos. Sim pq agora conhecemos Luís e sabemos do que ele é capaz. Ele começa a ficar obcecado por uma imagem (por exemplo a do enforcamento, muitas vezes ele se imaginou esganando Julião, e acabou cometendo o crime, e agora se pega imaginando o afogamento de Marina que levará...) sim, ele parte para a ação. Coisa de mente psicopata. Esta cena onde ele se imagina afogando Marina se passa depois da morte de Julião podemos portanto perfeitamente pensar que o romance vai continuar e que Luís vai afogar Marina por quem ele sente desejo, mas que o rejeita. O primeiro passo para esse processo já foi dado: a imaginação do afogamento. Saímos da circularidade, do flash-back. Algo ainda pode acontecer. Seria um desfecho aberto para outro romance dentro do início do romance, ou para um prolongamento deste. Nunca li nada mais moderno em termos de construção, mas é verdade que li pouco. Se alguém souber de outro, que me conte.
    Cybèle

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  32. PITACO 6/7
    Ao contrário de lady Macbeth que por mais que ela as esfregue, as manchas de sangue em suas mãos permanecem indeléveis, as escoriações nas mãos de Luís - causadas pela corda, arma do crime - cicatrizam após trinta dias, e um novo criminoso pode estar ressucitando. Se lady Macbeth se roe de remorso, já o nosso Luís parece pronto para outro crime: ‘’ A gente vai, vem, faz curvas e ziguezagues, e dá topadas de arrancar as unhas. A água lava tudo, as feridas mais graves cicatrizam.’’p 107 ed Reccord, 1980. Ainda que ditas em outro contexto, achei que estas palavras poderiam se aplicar ao crime por causa da presença da intensa chuva que lava tudo qdo Luís está imaginando Marina nua no quintal, e logo depois imagina-se afogando a amante.
    Outro detalhe que indica que Luís caminha para uma nova obsessão é sua mania que começa depois dos 30 dias acamado, ou seja no início do romace, após matar Julião, mania, como eu ia dizendo, de escrever o nome de Marina e de aproveitar as letras do nome para escrever ‘’coisas absurdas’’: ‘’ar, mar, rima, arma, ira, amar’’. Esmiuçando: temos o mar que é água, temos ar que pode se transformar em falta de ar (Julião morreu por falta de ar, suffocado), temos arma, temos ira...Bom, temos amar. E eu vejo um crime passional se esboçando...
    Claro que isto me pareceu mais evidente na segunda leitura, qdo precisei sentir a ressureição de Luís.

    Cybèle

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  33. PITACO 7/7
    Qto a ideia de Julião ser a literatura, esse pensamento é muito complexo para minha limitada cabeça. Mas trouxe-me ideias. Luís é um Don Quixote hereditário, seu pai já era um Don Quixote, um assíduo leitor que transmitiu esta paixão ao filho, que além de devanear com leituras, devaneia com romances imaginários (neste ponto, acho-o ainda mais interessante que o fidalgo espanhol). Neste caso, Julião como representante odiento da burguesia, dos opressores sociais em geral, das pessoas tolas e vaidosas etc, seria o moinho de vento.

    Além da literatura como filtro de ilusão entre o sujeito e o mundo, pensei no cinema desempenhando o mesmo papel tanto para Luís - que parece apreciar loiras de olhos azuis ou agateados como são as atrizes americanas - como para Marina que quer se parecer com as estrelas de cinema e levar uma vida glamorosa.
    Depois de traído, Luís diz ao pai de Marina: ‘’Isso é por causa do cinema, seu Ramalho. O senhor nunca vai lá. É feliz. Nem calcula as sem-vergonhezas que há na tela.’’ Ah! O cinema!
    Bem, agora vou ver se me calo por longo tempo, preciso retomar o fôlego, mas antes quero levantar dois brindes com uma deliciosa batidinha de maracujá (que saudades dos sabores da minha terra!)
    Um brinde ao Gracilianos Ramos! Um brinde à literatura brasileira!
    Cybèle
    PS: Fico-lhe muito grata, Lial, pela suas generosas postagens que me ensinaram tanto. Um abraço, e um brinde a vc tb!

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  34. Isso é discussão útil , das melhores! Quantas ideias passam pela cabeça de nossa Cybele ,e pelas nossas, lendo relendo Angústia associado a outros livros.Que riqueza!
    Adorei essas ideias todas.
    Elô

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