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6 de novembro de 2016

20 de novembro - dia da Consciência Negra: Cyana Leahy




Caros amigos e amigas, 

espero que esteja tudo bem com todos vocês. Aqui está tudo ótimo.  

Hoje é dia da Consciência Negra, a ser comemorado por todos nós, brasileiras e brasileiros, o ano inteiro. 

É extremamente importante reler a obra de CAROLINA MARIA DE JESUS e sua importância para a sociedade brasileira. QUARTO DE DESPEJO é leitura fundamental para a verdadeira literatura brasileira. É uma das quatro escritoras que analisei no Doutorado em Literatura Brasileira, na Universidade de São Paulo: Ercília Nogueira COBRA,  Julia Lopes de ALMEIDA, minha querida HILDA HILST (que tive o privilégio de entrevistar na Casa do Sol, no dia 04 de setembro de 1992) e CAROLINA MARIA DE JESUS. 

Até meus alunos de pós-graduação nas áreas médicas, na Universidade Federal Fluminense, revelaram a transformação em sua visão da sociedade, dos próprios pacientes, após lerem QUARTO DE DESPEJO. 

Só conhecemos CAROLINA por que o jornalista Audálio DANTAS foi fazer uma reportagem na Favela do Canindé,  em abril de 1958. Soube que aquele mulher negra, carregando sacos de papel na cabeça e nos ombros, estava escrevendo um livro sobre as mazelas da favela. Ficou curioso, quis ler. 
            
         APRESENTAÇÃO

'Quando vi CAROLINA a primeira vez foi em 1958 na Favela do Canindé. Cheguei lá, repórter, para saber o que haviam feito sobre umas balanças que a prefeitura mandou botar na favela. Carolina estava perto da balança dos meninos que os grandes tomaram. E protestava, dizendo: 'deixa estar que vou botar todos vocês no meu livro'. 
Perguntei sobre o livro, ela respondeu: 'o livro que estou escrevendo as coisas da favela'.  

Fui ver o livro. E vi os cadernos no guarda-comida escuro de fumaça. Eu vi, eu senti. Ninguém melhor do que a negra Carolina para escrever histórias tão negras. Nem escritor transfigurador poderia arrancar tanta beleza triste daquela miséria toda. Nem repórter de exatidão poderia retratar tudo aquilo no seco escrever. 

Foi por isso que eu prometi publicar seu livro. 
'QUARTO DE DESPEJO', título do livro, foi sugerido pela imagem que CAROLINA criou para a favela. Imagem perfeita e exata. Selecionei trechos, sem alterar uma palavra. 

CAROLINA, você gritou tão alto que o grito terminou ferindo ouvidos. A porta do QUARTO DE DESPEJO está aberta. Por ela sai um pouco da angústia favelada. É a primeira porta que se abre. Foi preciso abri-la por dentro e você encontrou a chave. Agora, vamos esperar que os cá de fora olhem para dentro e vejam melhor o QUARTO DE DESPEJO. 

Vejam o sol que entra agora no QUARTO DE DESPEJO. Aqueçam-se, irmãos, que a porta está aberta. CAROLINA MARIA DE JESUS achou a chave. Aqueçam-se!' 

            AUDÁLIO DANTAS (apresentação à edição original, 1960)




Assim começa QUARTO DE DESPEJO:
'15 DE JULHO DE 1955. Aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia compara um par de sapatos para ela. Mas o custo dos gêneros alimentícios nos impede a realização dos nossos desejos. Atualmente, somos escravos do custo de vida. Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei e remendei para ela calçar. 

Eu não tinha um tostão para comprar pão. Então, lavei 3 litros e troquei com o Arnaldo. Ele ficou com os litros e deu-me pão. Fui receber o dinheiro do papel. Recebi 65 cruzeiros. Comprei 20 de carne, 1 quilo de toucinho e 1 quilo de açúcar e 6 cruzeiros de queijo. E o dinheiro acabou-se. 

Passei o dia indisposta. Percebi que estava resfriada. À noite, o peito doía-me.  Comecei a tossir.  Resolvi não sair à noite para catar papel. Procurei meu filho João José. Ele estava na Rua Felisberto de Carvalho, perto do mercadinho.  O ônibus atirou um garoto na calçada e a turba afluiu-se. Ele estava no núcleo. Dei-lhe uns tapas e em cinco minutos ele estava em casa. 

Abluí as crianças, aleitei-as e abluí-me e aleitei-me. Esperei até as 11 horas por um certo alguém. Ele não veio. Tomei um melhoral e deitei-me novamente. Quando despertei o astro rei deslizava no espaço! A minha filha Vera Eunice dizia: 'vai buscar água, mamãe!'

16 de julho. Levantei-me. Obedeci a Vera Eunice. Fui buscar água. Fiz o café. Avisei as crianças que não tinha pão. Que tomassem café simples e comessem carne com farinha. Eu estava indisposta, resolvi benzer-me'. Abri a boca duas vezes, certifiquei-me que estava com mau olhado. A indisposição desapareceu, saí e fui ao seu Manuel levar umas latas para vender. Tudo que encontro no lixo eu cato para vender. Deu 13 cruzeiros. Fiquei pensando que precisava comprar sabão e leite para a Vera Eunice. E os 13 cruzeiros não dava! 
Cheguei em casa, aliás, no meu barraco, nervosa e exausta. Pensei na vida atribulada que eu levo. Cato papel, lavo roupa, permaneço na rua o dia todo. E estou sempre em falta. A Vera não tem sapatos. Ela não gosta de andar descalça. Faz uns dois anos que pretendo comprar uma máquina de moer carne. E uma máquina de costura. 

17 DE JULHO. Domingo. Um dia maravilhoso. O céu azul sem nuvens. O Sol está tépido. Deixei o leito às 6h30. Fui buscar água. Fiz café. Tenho só um pedaço de pão e 3 cruzeiros. Dei um pedaço de pão a cada um, pus feijão no fogão que ganhei ontem do Centro Espírita da Rua Vergueiro 103. Fui lavar minhas roupas. 
Quando retornei do rio o feijão estava cozido. Os filhos pediram pão. Hoje é a Nair Mathias quem conseguiu implicar com meus filhos. Estou revoltada com o que as crianças presenciam. Ouvem palavras de baixo calão. Oh! se eu pudesse mudar daqui para um núcleo mais decente!

Saí à noite, fui catar papel. Quando passava perto do campo do São Paulo, havia várias pessoas saindo. Todas brancas, só um preto. E o preto começou a insultar-me: 'Vai catar papel, minha tia? Olha o buraco, minha tia!' 

Aqui é assim. A gente não gasta luz, mas tem que pagar. Saí e fui catar papel. 

Estive revendo os aborrecimentos que tive estes dias. Suporto as contingências da vida resoluta. E não consigo armazenar para viver, resolvi armazenar paciência'. 

... O que eu aviso aos pretendentes à política é que o povo não tolera a fome. É preciso conhecer a fome para saber descrevê-la. 

Eu cato papel, mas não gosto. Então eu penso: faz de conta que estou sonhando! 

26 de AGOSTO. A pior coisa do mundo é a fome! 

31 de DEZEMBRO. Espero que 1960 seja melhor do que 1959. Sofremos tanto, que dá para a gente dizer: 
'Vai, vai mesmo! Eu não quero você mais. Nunca mais!'

1 de JANEIRO de 1960.
Levantei às 5 horas e fui carregar água'. 
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Algo mais a dizer? 

Ficou famosíssima, publicada no Brasil e no exterior, traduzida para vários idiomas. Mas no dia seguinte aos festejos, foi catar papel no lixo. 

Se não fosse AUDÁLIO DANTAS, como teríamos conhecido CAROLINA? Quantas 'carolinas' haverá ao nosso redor que não sabemos olhar e ver? 

Essa é a verdadeira LITERATURA BRASILEIRA. Viva a consciência negra o ano inteiro! 

Ótimo fim-de-semana para todos vocês. 

Beijos e abraços, 

Cyana Leahy 

Professora (UFF), escritora, tradutora
PhD em Educação Literária (London University) 
Pesquisadora doutoral em Literatura Brasileira (USP)
Mestra em Educação (UFF), Licenciada em Letras (UFF), Graduada em Música (UFRJ) 
Autora de 18 livros: 6 de poesia, 3 de prosa adulta, 3 de prosa juvenil, 6 de pesquisa acadêmica publicados pelas editoras Autêntica, casa da Palavra, CL Edições, EdUFF, Franco, Martins Fontes,  Papirus, 7 Letras  

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