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24 de outubro de 2015

Singrando entre ideias e sonhos.

Por Wagner Medeiros Jr

Quando o príncipe herdeiro D. João decidiu pela tomada da Guiana Francesa, em 1808, em represália à invasão de Portugal por Napoleão, a preparação da expedição militar para a invasão de Caiena por terra concentrou-se no Grão-Pará. O efetivo das tropas de linha de frente contava então com 800 homens. A população do Grão-Pará, que incluía o atual Amazonas, somava quase 90 mil habitantes, enquanto a cidade de Belém não passava dos 25 mil. Pode-se mensurar, portanto, que o contingente das tropas egressas do Grão-Pará era bastante expressivo.
Integravam as fileiras luso-paraenses soldados das mais diversas etnias. Brancos, negros, índios, mestiços e tapuios, isto é, descendentes de índios que moravam em cabanas espalhadas pelo estuário do Amazonas em condições de grande pobreza. O baixo valor do soldo e os constantes atrasos dos pagamentos tornavam a carreira militar pouquíssimo atrativa. Isto obrigava as forças regulares a apelar para o recrutamento forçado, o que gerava grande terror à população civil. Os postos de comando invariavelmente destinavam-se aos oficiais de origem portuguesa.
Durante o período de ocupação da Guiana (1809-1817) intensificou-se a comunicação e a movimentação de tropas entre Caiena e o Grão-Pará. Belém também passou a ser um importante interposto das tropas que vinham do Ceará, de Pernambuco e do Rio de Janeiro. Segundo a historiadora Magda Ricci “só em 1809 o rei mandava ir de Pernambuco ao Pará 800 homens do regimento de artilharia. Esses, de fato, se apresentaram em Belém com reforço constituído por recrutas cearenses”.
Outro fato marcante é que o Grão-Pará passou a interagir com mais efetividade com Rio do Janeiro, agora sede do reino e residência oficial da família real portuguesa. Antes todo intercâmbio paraense estava restrito à Lisboa.
É nesse movimento constante que foi transposta de Caiena uma grande coleção de especiarias e espécies frutíferas, que seriam introduzidas no Grão-Pará, Pernambuco e no atual Jardim Botânico no Rio de Janeiro. Entre os sacarídeos veio a “cana-caiana”, hoje muito difundida em nossa cultura. Mas, além das espécies botânicas vieram também as idéias do iluminismo. Ainda aflorava na Guiana a revolução escrava (1791-1804) que tornara independente o Haiti, depois da morte de mais de 24 mil brancos e 100 mil escravos. Muitos dos colonos franceses haviam buscado refúgio na Guiana.
Quando, por fim, as tropas luso-paraenses regressam da Guiana o constitucionalismo espraiava-se por toda Península Ibérica e D. João VI era forçado a retornar a Portugal. Tudo isto marcaria profundamente a vida social e política do Grão-Pará, depois de 1817. Se ante o magnífico esforço de guerra contribuíra para união luso-paraense, a concentração de poder e riqueza na mão da minoria portuguesa, agora associada a estrangeiros, sobretudo a ingleses, despertaram um sentimento de ódio, já que a maioria da população vivia em condições miseráveis.
Para os paraenses a solução dos problemas sócio-econômicos estava na criação de uma nova República. Só assim julgavam possível diminuir o poder político das classes dominantes. Os negros buscavam a abolição da escravatura, conforme nas colônias francesas, enquanto os índios e os mestiços lutavam por não ter que trabalharem tais como escravos, sem qualquer forma de direito. As idéias libertárias espraiavam-se por toda bacia amazônica, singrando por todas as partes.
Ao final de setembro de 1822, quando chegou a Belém as primeiras notícias de que o príncipe herdeiro D. Pedro havia decretado a independência do Brasil de Portugal, o sonho de liberdade do Grão-Pará ainda pulsava enormemente.  

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Preto no Branco por Wagner Medeiros Junior

17 de outubro de 2015

Livro: O Sonâmbulo Amador, de José Luiz Passos

Olá queridos!
Vou publicar aqui o post que fiz no meu blog Mar de variedade.

A escolha de outubro do Clube de Leitura Icaraí foi esse livro, que gostei bastante.

Sinopse: "O sonâmbulo amador é um romance original, cativante e por vezes irônico, sobre os feitos nem sempre memoráveis de um homem marcado pela perda. Apesar de suas crises e incertezas, ele tenta se corrigir e acertar como marido, como funcionário, como amigo e até mesmo como herói.

Jurandir é um pequeno funcionário da indústria têxtil pernambucana. Dias antes de se aposentar como chefe de segurança no trabalho numa tecelagem no interior de Pernambuco, empreende uma viagem ao Recife para resolver um processo trabalhista. A jornada prova-se um pesadelo; sem motivos aparentes, ele incendeia o carro da empresa e perde o controle de suas ações. Dois meses depois, é internado numa clínica psiquiátrica na cidade alta de Olinda e, a pedido de doutor Ênio, começa a escrever seus sonhos, que entrelaça com eventos do passado, relatos da juventude, suas opiniões e sua rotina de interno.

Ao perder o limite das suas convicções, esmagado por eventos trágicos, tenta aceitar o passado e conviver com a precariedade do presente com a ajuda de um enfermeiro e de uma interna. Através do que Jurandir vê e narra, através mesmo do que ele tenta esconder, o leitor vai tomando consciência das tragédias que cercam a vida desse homem aflito: o acidente na juventude que o deixou manco; suas reflexões sobre a fragilidade das amizades; a traição e a crise no casamento; o desenlace fatal de seu único filho.

Em quatro “cadernos”, José Luiz Passos mescla formas distintas de narrar — a vivência diária de Jurandir, seus sonhos, suas lembranças da juventude e do casamento, seus próprios textos sobre figuras do passado — para compor, gradualmente, um retrato comovente, que revela o personagem tanto no que ele diz quanto no que procura esconder."


Com esse livro, o autor venceu o 11 º prêmio literário Portugal Telecom. 
A narrativa se passa, na maior parte do tempo, em uma clínica psiquiátrica onde Jurandir ficou internado por vários meses. 
O livro contém alguns diálogos, mas é o próprio Jurandir o narrador.
A obra é interessante, pois se trata das memórias do Jurandir, antes da internação. Em algumas partes, ele narra seus sonhos, em outras, momentos que realmente aconteceram. 
O Jurandir passou por momentos bem difíceis ao longo da vida, e é interessante a sua descrição, que é de um interno, de uma pessoa abalada emocionalmente.
Ele acaba fazendo amizade com uma interna e com o enfermeiro Ramires. Com este, ele vive algumas aventuras, mesmo estando internado em uma clínica psiquiátrica. 
De uma forma geral, a leitura flui bem. O livro é muito bem escrito. 
Recomendo!

9 de outubro de 2015

Indicações para escolha do livro do mês






Em 1977, Mario Vargas Llosa começou a escrever um romance que seguia um caminho diferente - em vez de usar suas memórias para compor uma história de forte veia cômica, ele decidiu recontar a dramática Guerra de Canudos, impressionado pela leitura, alguns anos antes, de 'Os Sertões', de Euclides da Cunha. Em 1980, após exaustivas pesquisas em arquivos históricos e viagens pelo sertão da Bahia, ele terminava 'A guerra do fim do mundo'. Nele, o escritor peruano constrói uma saga que engloba tudo - honra e vingança, poder e paixão, fé e loucura. O autor dá uma nova dimensão à história de Antônio Conselheiro, em que personagens de carne e osso, alguns reais, outros imaginados, empreendem uma saga sem paralelos na história do país.


Esta obra mostra a história de um burocrata medíocre, Ivan Ilitch, um juiz respeitado que depois de conseguir uma oferta para ser juiz em uma outra cidade, compra um apartamento lá, para ele, sua mulher, sua filha e seu filho morarem. Ao ir para o apartamento, antes de todos, para decorá-lo, ele cai e se machuca na região do rim, dando início à uma doença.












3 de outubro de 2015

Clube do Conto - Pintor de paredes: novaes/



Durante todo o tempo ouvi daquela nobre senhora as mais veementes recomendações. A reforma em seu grandioso apartamento de frente para a floresta haveria de ficar perfeita. Meu trabalho era emassar as paredes e pintá-las, tudo com muito cuidado, sem deixar pingo no sinteco e com os recortes feitos na maior retidão. Ouvi daquela senhora todos os avisos, do quão importante seria respeitá-los, segui-los como se minhas mãos robóticas fossem programadas para aquela função precisa, matemática, infalível.

Juro que olhei para sua boca falante espantado com tamanha capacidade de predizer meu fracasso, pois seus repetidos alertas só me faziam acreditar que, de fato, sua reforma corria perigo em minhas mãos. Meu Deus, cheguei a culpar-me pela imprudência e canalhice profissional de aceitar aquele trabalho, pois com certeza meus quinze anos de experiência na profissão não eram suficientes para tamanha responsabilidade na casa de tão importante senhora.

Talvez ali as paredes não fossem de tijolos, nem de blocos de concreto, quem sabe tenham sido feitas de um material flexível, fofo, escorregadio, que me impedisse de aplicar a massa com perfeição. Ao invés de nivelar a parede, minhas tentativas com a espátula criariam ondas, cavidades, bolhas, protuberâncias inconvenientes que me projetariam, de imediato, ao inferno incandescente nas palavras daquela educada senhora.

Confesso que estava trêmulo nas mãos e frouxo nas pernas durante todo o emassilhar, o que fez daquela atividade quase um livre criar de desenhos brancos na parede velha, amarelada. Busquei as falhas na parede, que cobria com golpes de massa, espremida e espalhada como se estivesse em guerra contra aquela alvenaria, ocupando espaços, calando para sempre rachaduras, furos e antigas infiltrações inimigas.

Meu trato com a parede era um só: eu a venceria. Mas admito que meu diálogo com a massa e com a tinta seria muito mais difícil. Ao aplicar a massa, antes da lixa, aquelas ranhuras formavam desenhos, texturas, que me encantavam, me intrigavam e, sobretudo, me paralisavam. Como lixá-los? Como destruir aquelas obras de arte, aquela comunicação visual intensa com os visitantes? Será que aquela instruída senhora não permitiria que sobrevivessem? Não, óbvio que não. Parede é parede, não é obra de arte.

O fato é que sou um operário incomum. Meu pai sempre foi peão de obra e chegou a mestre. Já minha mãe, que era professora e militante comunista, via em meu velho seu operário idealizado, força motriz da sociedade, como dizia, futuro de um sonho igualitário. Aproximara-se dele através de sua militância nas construções, caminhando toda sem jeito entre entulhos, tijolos, tábuas e trabalhadores surpresos com sua presença naquele tumulto rude e masculino. Isto é o que os dois me contaram, mas desconfio de que minha mãe intelectual gostava mesmo era da pegada do meu pai, um cara firme, objetivo, sem refinamento, mas que carregava nas palavras e nas ações o carinho de um grande homem. De meu pai, herdei a facilidade para a ação, não há trabalho que não possa ser feito. O legado de minha mãe é essa coisa de enxergar mensagens humanas na massa espalhada pela parede, é imaginar que espátula, pincel e rolo podem pertencer ao mundo da arte, mesmo que sejam vendidos em lojas de tinta.

Esta senhora distinta que me contratou para regularizar suas paredes castigadas pelo tempo, nada mais esperava além da obviedade: superfícies lisas e cor uniforme. Obviamente, ela desconhece que os trabalhos manuais remontam aos artesãos de uma era anterior às fábricas, às indústrias, à divisão do trabalho, essas coisas que nos tornaram, a cada um, uma pequena parte da produção, onde o toque pessoal, o dom de cada um, foi para as cucuias. Ela desconhece que somos descendentes dos velhos artesãos e que nossas mãos, portanto, não são um dispositivo autômato. Afirmo sem medo de errar que todos nós, pintores de paredes, encaramos com esmero artístico cada empreitada. O mesmo posso dizer dos marceneiros e até no levantar paredes é preciso arte para juntar os tijolos com perfeição.

Mas esta senhora tão chique desconhece esses assuntos, não tem tempo para meus alongamentos filosóficos (enquanto meu pai gostava de malhar o corpo de vez em quando, minha mãe me ensinava a fazer alongamentos na mente). O que esta senhora requintada me pede é para lidar, unicamente, com as paredes. O mais engraçado é que ela quer ter paredes que não se notem. Tão regulares que passem despercebidas. Jamais se ouviu alguém dizer: “nossa, que linda parede!”, “veja, que parede tão bem emassada e pintada!” Nada disso. Se não houver quadros e a parede estiver exposta, o que se comenta é que está nua, ausente de arte. A parede pode ser perfeita, lisa, sem estrias, sem desconformidades, com o melhor colorido, mas sua nudez é mal vista. Vá entender!

Lixei todas as ranhuras e excessos de massa e encarei todo aquele pó branco que se espalhou pela sala como um subproduto cultural. Havia naquelas partículas poesia e fiquei com o corpo impregnado de versos. Minhas pegadas ficaram marcadas no chão empoeirado, como se fossem marcações de um balé único, dedicado à importância das paredes na vida humana. Estes limites criados pelo homem que, se ensina desde criança, devem ser resistentes a tudo, e sem os quais não teríamos casas, escritórios, fábricas, prisões. 

Alisadas as paredes, muni-me dos galões da tinta branca que iria descolorir o ambiente. A sala daquela impecável senhora seria alva como supõe-se a pureza, casta de emoções, neutra como se pretendem os hospitais e os hospícios. É de se imaginar que nestes locais as paredes são brancas numa tentativa desesperada de que elas não participem, de forma alguma, dos dramas contundentes que ali se desenrolam. Chega a impressionar como loucos, doentes e ricos precisam do branco em volta de si.

Após o primeiro banho de tinta branca fosca e de ter completado a segunda demão em três das quatro paredes, percebi que o último galão de tinta disponível não era fosco. Havia um brilho intenso naquele branco e decidi que aquilo só poderia ser um aviso, um convite, uma oportunidade para que eu desse meu toque pessoal. A parede faltante era a de fundo, que acolhia e apresentava a todos a mesa de jantar, a localização perfeita para uma obra de arte. Busquei na mochila um livro de Vinícius de Moraes, presenteado por minha mãe, e, com um pincel fino e a caligrafia que se assemelhava aos manuscritos portugueses de antanho, nos azulejos de séculos passados, reproduzi naquela parede os versos mais lindos que encontrei. A escrita com tinta brilhosa sobre o fundo fosco não era percebida à primeira vista, senão quando sobre ela batiam os raios de sol das seis horas da manhã ou, à noite, quando eram acesas as dicróicas que se ocultavam no gesso a fim de iluminar as obras de arte que ali se imaginava pendurar. Terminei a obra satisfeito e fui-me embora.

Soube mais tarde que a elegante senhora que me contratara, ao ser surpreendida pela artimanha criativa, tivera uma síncope, um faniquito daqueles, e ameaçara com todas as salivas caçar-me por toda a cidade, estrangular-me com as unhas, derrubar aquela parede infame e outras providências escalafobéticas. Fora impedida por sua filha, uma jovem cheia de decisão que estudava filosofia, contestava os valores burgueses da família e que, encantada, vira em meu trabalho o anúncio de um mundo novo, onde as capacidades individuais podem florescer sem as amarras de um capitalismo que precisa predeterminar todos os papéis sociais.

Hoje aquela agradável senhora é minha sogra. Permaneço estarrecido com sua capacidade de predizer o fracasso do nosso casamento. Sua filha ama esse meu jeito de tratar o trabalho como poesia e espera que, seguindo a evolução da espécie, nossos filhos cuidem da poesia como trabalho. Isto é o que ela diz. Mas eu acho mesmo é que ela gosta da minha pegada. 

2 de outubro de 2015

Livro: Shalimar, o equilibrista, de Salman Rushdie

Olá queridos!
Vou reproduzir o post que fiz no meu blog Mar de variedade.


Em setembro, só consegui ler esse livro de quase 400 páginas. Por ser uma leitura densa, demorei o mês todo para lê-lo. Esse foi o livro do mês do Clube de Leitura Icaraí.


Sinopse: "Todos os temas recorrentes na obra de Salman Rushdie concorrem na trama de seu nono romance e se combinam para fazer de Shalimar, o equilibrista a narrativa mais impactante do autor de Os filhos da meia-noite , Haroun e o Mar de Histórias e O último suspiro do mouro . É uma história de amor e vingança, com todos os ingredientes dos grandes épicos: guerras, revoluções, atos heróicos, assassinatos, tabus violados, destinos interrompidos e grandes deslocamentos no espaço, ao longo de sessenta anos de história do século XX. 
No cenário das questões políticas mais nevrálgicas da história contemporânea, Rushdie constrói um enredo em que a paixão súbita e proibida de um embaixador americano por uma dançarina belíssima de etnia hindu, habitante da Caxemira, desencadeia uma série de acontecimentos que apontará para os vínculos complexos entre Ocidente e Oriente nos dias de hoje. 
Com avanços e recuos no andamento narrativo, Rushdie conduz as histórias dos personagens em vias paralelas, mas as entrecruza magistralmente à medida que a obra avança. Os pontos de contato entre a história da Índia, a política dos Estados Unidos durante a Guerra Fria e a formação dos grupos extremistas islâmicos depois da queda da ex-União Soviética vão se tornando cada vez mais estreitos, relacionando-se às histórias ficcionais de Max Ophuls, Boonyi Kaul e Shalimar, o equilibrista. No romance, as esferas da ficção, da história, do mito e da política se confundem e ganham estatuto artístico excepcional. 
A função de Shalimar, o equilibrista, é tentar desvendar o sentido da desarmonia que transformou sua vida em escombros. Para isso, durante sua representação - que outros chamariam vida -, terá de elevar-se por cima da copa de uma árvore em chamas e equilibrar-se numa corda feita de ar."


Esse livro não é de leitura fácil, porém, vale a pena dar uma insistida e ler ele até o final. 
Os parágrafos são longos, os nomes dos personagens difíceis, mas a história é bem interessante.
O livro é dividido em 5 longos capítulos e cada um deles tem o nome de um personagem e, no decorrer da história, você percebe a ligação entre esses personagens. 
Para quem se interessar, dê uma conferida na biografia do autor, através do google. Ele teve que viver no anonimato durante anos, por causa do livro Versos Satânicos, que causou controvérsia no mundo Islâmico, devido a este livro ter sido considerado ofensivo ao profeta Maomé.
Esse livro vai abordar a vida de quatro protagonistas, mas tendo por pano de fundo as guerras e a formação de grupos extremistas. 
O livro tem um lado de fantasia também, que se mistura com fatos históricos e com o romance, como um todo.
A construção do personagem Shalimar é muito rica. Conseguimos enxergar vários homens em um só, no decorrer do livro. 
É um livro que aborda muitos assuntos e que tem certa complexidade. 
Boa leitura!

1 de outubro de 2015

O Aleph: Jorge Luis Borges





The Past

The debt is paid,
The verdict said,
The Furies laid,
The plague is stayed,
All fortunes made;
Turn the key and bolt the door,
Sweet is death forevermore.
Nor haughty hope, nor swart chagrin,
Nor murdering hate, can enter in.
All is now secure and fast;
Not the gods can shake the Past;
Flies-to the adamantine door
Bolted down forevermore.
None can re-enter there,—
No thief so politic,
No Satan with a royal trick
Steal in by window, chink, or hole,
To bind or unbind, add what lacked,
Insert a leaf, or forge a name,
New-face or finish what is packed,
Alter or mend eternal Fact.

Ainda que me tire a vida, n'Ele confiarei (Jó 13,15)

Na sua história obscura e valorosa são freqüentes os hiatos. Por volta de 1868 sabemos que estava de novo em Pergamino: Casado ou amancebado, pai de um filho, dono de uma fração de campo. Em 1869 foi nomeado sargento da polícia rural. Corrigira o passado; naquele tempo devia se considerar feliz, embora no fundo não o fosse. (Esperava-o, secreta no futuro, uma lúcida noite fundamental: a noite em que por fim viu seu próprio rosto, a noite em que por fim ouviu seu nome. Bem entendida, aquela noite esgota sua história; ou melhor, um instante daquela noite, um ato daquela noite, porque os atos são nosso símbolo.) Qualquer destino, por longo e complicado que seja, consta na realidade de um único momento; o momento em que o homem sabe para sempre quem é. Conta-se que Alexandre da Macedônia viu seu futuro de ferro refletido na fabulosa história de Aquiles; Carlos XII da Suécia, na de Alexandre. A Tadeo Isidoro Cruz, que não sabia ler, esse conhecimento não foi revelado num livro; viu-se a si mesmo num entrevero e num homem. Os fatos aconteceram assim: 

Nos últimos dias do mês de junho de 1870, recebeu a ordem de prender um malfeitor que devia duas mortes à justiça. Trata-se de um desertor das forças que o coronel Benito machado comandava na fronteira sul; numa bebedeira assassinara um preto num prostíbulo; noutra, um habitante do distrito de Rojas; o informe acrescentava que procedia de Laguna Colorada. Naquele lugar, quarenta anos antes, os montoneros tinham se reunido para a desventura que entregou suas carnes aos corvos e aos cães; dali saiu Manuel Mesa, que foi executado na praça da Victória, enquanto os tambores rufavam para que não se ouvisse sua ira; dali saiu o desconhecido que gerou Cruz e morreu numa sanga, com o crânio partido por um sabre das batalhas do Perú e do Brasil. Cruz esquecera o nome do lugar o nome do lugar; com leve mas inexplicável inquietação reconheceu-o... O criminoso, acossado pelos soldados, foi tramando a cavalo um longo labirinto de idas e vindas; contudo foi por eles encurralado na noite de 12 de julho. Refugiara-se num capinzal. A treva era quase indecifrável; Cruz e os seus, cautelosos e a pé, avançaram rumo as moitas em cujo fundo trêmulo espreitava ou dormia o homem secreto; Gritou uma chajá; Tadeo Isidoro Cruz teve a impressão de já ter vivido aquele momento. O criminoso saiu do abrigo para lutar com eles. Cruz o entreviu, terrível; a cabeleira crescida e a barba cinza pareciam comer seu rosto. Um motivo notório me impede de relatar a luta. Basta lembrar que o desertor feriu de morte ou matou vários dos homens de Cruz. Este enquanto combatia na escuridão (enquanto seu corpo combatia na escuridão), começou a compreender. Compreendeu que um destino não é melhor que outro, mas que todo homem deve acatar o que traz dentro de si. Compreendeu que as divisas e o uniforme o estorvavam. Compreendeu que o outro era ele. Amanhecia na planície desmesurada; Cruz jogou no chão o quepe, gritou que não ia consentir o crime de que matassem um valente e se pôs a lutar contra os soldados, junto do desertor Martin Fierro.





Vemos agora por espelho, na obscuridade, tudo o que vemos é falso. Todo homem é dois homens e o verdadeiro é o outro, o que está no céu. Nossos atos projetam um reflexo invertido, de modo que, se velamos, o outro dorme, se fornicamos, o outro é casto, se roubamos, o outro é generoso. Mortos, nós nos uniremos a ele e seremos ele. 






Depois de séculos, todas as coisas recuperarão seu estado anterior, e Platão, perante o mesmo auditório, em Atenas, ensinará de novo a mesma doutrina.




De Civitate Dei (A Cidade de Deus) é obra de Santo Agostinho, onde descreve o mundo, dividido entre o dos homens (o mundo terreno) e o dos céus (o mundo espiritual). Uma das criações mais representativas do gênero humano. A propósito da filosofia ou teologia da História, trata dos mais variados e complexos assuntos que sempre apaixonaram e torturaram o espírito humano: da origem e substancialidade do bem e do mal, do pecado, das culpa e da morte, do direito, da lei e das penas, do tempo e do espaço, da contingência e da necessidade, da Providência, da ação humana e do destino no desenvolvimento da História: do ser, do conhecer e do agir do homem, de Deus, da natureza e do espírito, da temporalidade, do eterno, da perenidade e dos ciclos cósmicos, da profecia e do mistério como argumento apologético, da pessoa, da cidade e da comunidade humana.


Olá, quero te conhecer!
O imortal

Os poetas abusam dos traços circunstanciais existente nos fenômenos, o que contamina tudo de falsidade. Os traços circunstanciais podem ser abundantes nos fatos mas não os caracterizam adequadamente para posteriores acessos pela memória, e eles, então, acabam diluindo-se com o tempo. 


"Quando o fim se aproxima, já não sobram imagens da recordação; só restam palavras."




Ser imortal é ser insignificante; exceto o homem, todas as criaturas o são, pois ignoram a morte; o divino, o terrível, o incompreensível, é se saber imortal. Notei que, apesar das religiões, essa convicção é raríssima. Israelitas, cristãos e mulçumanos professam a imortalidade, mas a veneram que tributam ao primeiro século prova que somente creem nele, uma vez que destinam todos os demais, em número infinito, a premiá-lo ou castigá-lo. Mais razoável me parece a roda de certas religiões do Hindustão; nessa roda, que não tem princípio nem fim, cada vida é efeito da anterior e engendra a seguinte, mas nenhuma determina o conjunto… Doutrinada por um exercício de séculos, a república de homens imortais atingira a perfeição da tolerância e quase do desdém. Sabia que num prazo infinito a todo homem acontecem todas as coisas. Por suas virtudes passadas ou futuras, todo homem é credor de toda bondade, mas também de toda traição, por suas infâmias do passado ou do futuro. Assim como nos jogos de azar as cifras pares e as cifras impares tendem ao equilíbrio, do mesmo modo também se anulam e se corrigem o engenho e a estupidez, e talvez o rústico Poema do Cid seja o contrapeso exigido por um único epíteto de Églogas ou por uma sentença de Heráclito. O pensamento mais fugaz obedece a um desenho invisível e pode coroar, ou inaugurar, uma forma secreta. Sei de quem praticasse o mal para que nos séculos futuros resultasse o bem, ou tivesse resultado nos já pretéritos… Encarados assim, todos os nossos atos são justos, mas também são indiferentes. Não há méritos morais ou intelectuais. Homero compôs a Odisséia; postulado um prazo infinito, com infinitas circunstâncias e mudanças, o impossível é não compor, nem uma única vez, a Odisséia. Ninguém é alguém, um único homem imortal é todos os homens. Como Cornélio Agrippa, sou deus, sou herói, sou filósofo, sou demônio e sou mundo, o que é uma cansativa maneira de dizer que não sou.





As peças deste livro correspondem ao gênero fantástico - as coisas da vida real deslizam para contextos incomuns e ganham significados extraordinários, ao mesmo tempo que fenômenos bizarros se introduzem em cenários prosaicos. Os recorrentes motivos borgeanos do tempo, do infinito, da imortalidade e da perplexidade metafísica jamais se perdem na pura abstração; ao contrário, ganham carnadura concreta nas tramas, nas imagens, na sintaxe, que também são capazes de resgatar uma profunda sondagem do processo histórico argentino.







Deus pode fazer que o que um dia foi não tenha sido. 
(Canto XXI - Paradiso - De omnipotentia - Pier Damiani)