Pedretti |
Igarashi nasceu em 1947. Tornou-se, com o passar dos anos, um apaixonado pela riqueza e beleza das literaturas árabe e persa. Concluiu seu doutorado no assunto na Universidade de Tóquio e foi prosseguir seus estudos no Irã, de onde teve que partir às pressas, como tantos outros, após a revolução de 1979, que levou o Ayatollah Khomeini ao poder.
O evento, no entanto, não parece ter feito esmorecer a paixão de Igarashi, que traduziu pela primeira vez para a língua japonesa obras de Avicena e Averróis, os mesmos grandes pensadores árabes que ajudaram a trazer o pensamento de Aristóteles e de muitos pensadores fundamentais da Antiguidade à lume, para que não se perdessem na confusão medieval européia. Além disso, traziam a riquíssima filosofia e teologia islâmicas originais ao Ocidente. Provavelmente Igarashi foi responsável pela primeira ocasião na vida de muitos estudantes japoneses em que liam um autor islâmico em seu próprio idioma.
Salman Rusdie |
Em 1989, ele se encarregou da tradução do livro "Os Versos Satânicos", do escritor inglês Salman Rushdie, para o japonês.
E vocês já tiveram a oportunidade de ler "Os Versos Satânicos"? É um lindo livro, poético de forma caudalosa, difícil na sua convicção em fazer-nos aceitar uma mitologia islâmica que nos parece impenetrável completamente misturada às familiaridades da nossa vida ocidentalizada moderna. É um romance sobre identidade, sobre encontrar seu lugar no mundo. E que o Corão tenha sido invocado, é apenas uma circunstância incontornável, dada a identidade de seus protagonistas, dado o berço de seu autor.
Fato é que, em 1989, o mesmo mencionado Ayatollah Khomeini pediu a cabeça de Rushdie e de todos os envolvidos na publicação do livro que tivessem tido noção de seu conteúdo. O autor teve que viver escondido e sob proteção policial por quase uma década. Outros tanto, entre tradutores e editores, sofreram ataques, em diversos países, mas sobreviveram.
Hitoshi Igarashi, no entanto, não sobreviveu. Foi esfaqueado até a morte no campus da universidade em que lecionava, em 1991. E eu não suponho que muitos japoneses tenham se arriscado a estudar o Islã desde então.
Igarashi |
Me lembro de Salman Rushdie em 2010, na FLIP. Me lembro principalmente de ter ido à festa da Companhia das Letras no evento e, de muito tarde, vê-lo dançando desconjuntadamente na pista ao som de "País Tropical", cantada por Wilson Simonal. Fiquei pensando que, para muitas cabeças no mundo, muitas tramando libertações pessoais e cósmicas, ele continua condenado. Sua cabeça ainda estava e está a prêmio. Mas tem sempre uma hora em que é preciso conviver com isso. Para mim, que já comecei a lê-lo depois que tudo isso aconteceu (eu tinha 10 anos quando "Os Versos Satânicos" foi publicado), vê-lo ali se remexendo era um lembrete de que a vida tinha que continuar de algum jeito.
O discreto caso de Igarashi, no entanto, me toca particularmente. Sua morte fechou um discreto e constante canal entre duas culturas muito distantes. Sua morte e a de sua paixão com ele, empobreceu de forma quase imperceptível a vida de islâmicos e japoneses. E isso provavelmente por obra de um único homem ou mulher, uma faca e o descuido de, provavelmente, não abrir o livro a respeito do qual aquela morte versava.
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