Prezados colegas, compartilho com vocês o conto "A casa de Margarida", classificado entre os finalistas do Prêmio Off Flip de Literatura, edição 2014, selecionado assim para integrar a coletânea de contos do prêmio.
A CASA DE MARGARIDA
Novaes/
Uivos
lamentosos nas frestas das janelas. Na madeira empenada das esquadrias antigas,
descascadas, onde se podia arrancar lâminas de tinta seca. Pedaços de passado.
Mortos, mas ali. Ninguém os carregou para fora. Ali residia a faina de
aguentar. Era aquela casa que habitava, soberana, seus corpos. Naquela sala, nos
quartos, no corredor, nos tetos altos moldurados, havia mil anos, mil olhares,
mentes, ressentimentos, inábeis sensações, eternos planos passados.
Ninguém
da família dizia, mas o que o vento assoviava nas frestas soava sempre como
aviso fúnebre. Certa tia morrera após uma noite de assovios, lembravam-se, mudos,
pelos olhos. Uma noite inteira de assovios. Não os assovios de seu peito tísico.
As janelas. E houve aquela tarde de forte ventania em que um dos cães fora
atingido no quintal pela árvore que tombou. Dormia. Morreu. Um breve ganido,
curto uivo da morte, uniu-se aos uivos das velhas ventanas. Mil anos. Mil
noites de ventania. Mil assovios a cada noite. Vendaval de pensamentos.
Dez
séculos essa agonia. Assim parecia. Não importava ao certo se almas existiam. Ou
se resistia mesmo vivo o passado. Ou, ainda, se era o presente o verdadeiro
problema. Importava que os antepassados lhes sobreviviam, sobretudo ali, naquela
casa, onde continuavam insistentes, feitos de um vazio presente, verdadeiros trans-parentes.
É
o que sinto. É o que sinto, depois do que vi.
O
que vi naquela sala. Um pai preso à cadeira, não por doença do corpo. Inação
histórica. Paisagem humana entre paredes. Natureza morta na cadeira. Vestia uma
camiseta branca sem mangas e bermudas, tais eram as janelas fechadas e o clima
quente no subúrbio daquela casa. À sua frente, o silêncio abafado de uma parede
medíocre. Em seu colo, um rádio, modelo anos 1970, que vi ligar uma vez como se
abrisse um balão de oxigênio.
Olhei
ao redor e vi a mulher, agachada, a limpar o rodapé daquela sala. Pareceu-me
inútil, tal o estado das paredes manchadas, envelhecidas, o aspecto geral de sujeira.
Olhei bem. Limpava o rodapé com um pano sujo. Mudava as sujeiras úmidas de
lugar. Deixava no ar um cheiro molhado, de pano sujo de chão. E da sala foi
seguindo de joelhos pelo corredor e pelos quartos. Durante toda a minha estada,
a mulher não parou. Ela e os rodapés. Uma relação infinita.
Busquei
os olhos de minha namorada. Ela sorriu de um jeito que me foi impossível captar
o significado. Até hoje penso. Não foi um sorriso amarelo, mas também não foi
um sorriso natural. Talvez um sorriso alheio, retirado de dentro dela, só dela,
ou, quem sabe, de mim, da minha presença naquela casa. Vem, vem conhecer meu
irmão, ela disse. Deixei-me levar pelas mãos. No seu quarto, o rapaz assoprava
contra a janela fechada. Oi Ernesto. Shhhh!! O rapaz assoprava forte os cantos
da esquadria de madeira. Em cima, embaixo, nas laterais. Por todos os limites,
no encontro da madeira com a parede e das folhas de madeira e vidro com a
moldura de madeira. Parecia buscar alguma coisa com o sopro. Ele está ocupado,
vamos para o meu quarto, disse ela, tentando interromper minha atenção.
Segui
seus passos como se estivesse no corredor da morte. Havia conhecido Margarida
na faculdade e fui atrás de seu nome de flor, de seu sorriso triste, seu olhar dúbio.
Havia um tanto de alegria misteriosa naquele belo corpo. Mas era patente a falta
de franqueza corporal. Quando se dava a gestos expansivos, faltava-lhe
naturalidade. Margarida era linda, mas parecia desconjuntada de alma. Confesso
que aquilo mexia com as minhas fantasias de homem. O sonho de libertar uma
mulher de suas amarras profundas. De fazê-la desabrochar para a vida e o amor.
De ser o homem que fez isso.
Os
primeiros encontros, ela marcou no cinema, no barzinho, ou saímos após a
faculdade. Um mês assim. Namoro morno, começando. Mas pediu-me para pegá-la em
casa naquela tarde. Previa-se tempestade. Chuva de verão. Agora eu estava ali.
Havia conhecido, por assim dizer, seus pais e seu irmão, sem que nenhum deles me
tivesse dirigido a palavra, entretidos em tarefas insondáveis. E nesse instante
caminhava para conhecer o quarto de Margarida, sem fazer ideia do que se
passava à minha volta.
O
quarto de Margarida. Abriu a porta de madeira, com a mesma tinta envelhecida,
corroída pelo tempo, a parte de baixo descascada. Por dentro, a porta lixada,
sem tinta, na madeira crua. Foi o Luiz quem lixou pra mim, não ficou melhor?,
ela disse. Ficou. Talvez tenha ficado mais anteontem do que a casa, toda feita
de ontem. Por dentro do quarto, Margarida via a porta da construção, nem nova
nem velha, apenas de antes da história, de antes dos antepassados, de antes dos
acontecimentos. Uma porta tosca, mas pelo menos sem vida pregressa, sem
manchas. Foi inevitável pensar: e Margarida, como seria por dentro? Estaria com
a alma raspada, como aquela porta, sem tinta e sem manchas, sem marcas do passado?
Seria este o seu esforço para sustentar aquele sorriso enigmático, triste e
belo?
Olhei
para as paredes. Não as vi. Não havia paredes. Quer dizer, estavam lá, claro,
mas não se via um só centímetro de parede. Das quatro que formavam o quarto,
uma delas estava tomada por livros. Creio que era uma estante, do chão ao teto,
repleta de livros. Olhei para os títulos. Ficção. Biografias. Mais biografias.
Mais ficção. Vidas, um desfile de vidas, reais e inventadas, reais e
transfiguradas, de uma forma ou de outra, reais. Vidas vividas, vidas sonhadas,
vidas, superação, enfrentamentos, as durezas da vida, as durezas do ser humano,
as belezas, o sentido, o prazer de lutar e de perder, o viver na sua dolorosa e
saborosa plenitude. Ah, Margarida... Será que te entendo? Desvio meus olhos
para os olhos de Margarida. Tento enxergar neles sua história. Ou sua tentativa
de história. Ou, quem sabe, investigo, conteria aquele olhar todas aquelas
histórias dos livros? Afinal, quem é Margarida?
Continuo meu passeio pelas paredes. A parede que circunda a porta está coberta por cartazes, pôsteres. Artistas. Filmes. Peças de teatro. Mais personagens, penso. Bonito. Inspirador. A arte é uma coisa linda do ser humano. Sorrio para aquela parede, naquele quarto, naquela casa. Vejo que Margarida também sorri. Sinto que nunca estivemos tão próximos.
Olho
para a parede oposta à estante de livros. E vejo que Margarida foi engenhosa.
Para cobrir integralmente a parede, Margarida logrou prender CDs de frente, ou
seja, com as capas voltadas para nós. Um ao lado do outro, juntos, num grande
mosaico de capas de CDs. Ela repara meu espanto. Toco em alguns com o maior
cuidado. Ela se adianta, abre um dos CDs sem tirá-lo da parede, apanha o disco
e o coloca para tocar num pequeno aparelho ao lado da cama. Boa música. Forte,
sentida, viva. Aquele quarto, de alguma forma, tenta.
Olhei para a janela. A parede que a circunda está coberta por espelhos. Diversos tamanhos. Vejo-me em fragmentos. Mil olhos. Mil tons. E vejo o quarto em continuação, livros, pôsteres, CDs. Quarto que se duplica e engana a janela. Parece que é apenas uma passagem para a continuação do quarto. De porta a porta. Pelos espelhos, vejo Margarida de costas. Bela visão. Cabelos castanhos.
Súbito,
um vento me beija. Aumenta a força, estapeia. A janela está aberta. Aponto e
ela responde: sempre aberta, sempre. O que aconteceu a seguir, até hoje não
consigo explicar. Instala-se uma daquelas ventanias de fim de tarde. As árvores
se agitam lá fora, folhas e galhos farfalham com raiva. No quarto de Margarida,
um pequeno furacão. Mas, na casa, no restante da casa, gemidos. Uivos.
Assovios. Muitos, uma infinidade. Sinfonia macabra. Pensei ter ouvido choro e
gritos de pavor. Por toda a casa, as janelas sempre fechadas, velhas e empenadas,
fazem frestas, produzem um espetáculo de terror, sonoro e assustador. Seriam os
antepassados? almas sofridas? um encontro da natureza com seus elos perdidos?
Fosse o que fosse, todos os meus medos me surgiram. Explicáveis naquelas
circunstâncias! Mais uma vez, busquei os olhos de Margarida. Não os havia.
Margarida, de olhos fechados, abria os braços para o vento. A boca sorria, se
entreabria, inspirava. Os cabelos esvoaçavam. Eu, mudo. Terrificado.
Ouça
o vento! Ouça o vento!, ela gritou, sempre sorrindo. E percebi que havia de
esquecer os uivos. Que os assovios nos outros cômodos estavam em outro mundo. E
que o outro mundo estava no passado. Olhei para Margarida. Linda. De olhos
fechados, relacionando-se com a ventania. A janela aberta era mágica: ali não
havia silvos, só rajadas. Vento solto remexe, revira, bagunça, quebra, mas com
ele podemos comungar. Vento fino, sorrateiro, agudo, inesperado, este tem tom de
ameaça, parece mandar recado. Quanto Margarida deve ter levado para perceber
isso? Quanto de si para abrir a janela e abrir-se para o vento? Mil noites?
Entrei
no jogo da ventania. No jogo de Margarida. Respirei fundo. Abri meus braços,
meu peito, e meus arrepios deixaram de ser de medo. Vento forte resfriava o
calor abafado daquela casa. De olhos fechados, deixei que a força dos ventos me
dissesse para onde ir. Não só meu corpo, mas meus pensamentos. Ventania é
pensamento. E pensamento agora é Margarida. Só Margarida. E Margarida é
ventania, é rajada no peito, nos braços, no rosto. Margarida é furacão.
Turbilhão que me arrasta. E nossos braços abertos se fecham, um no outro. E
sinto Margarida e todo o seu vendaval. E poderíamos girar como um ciclone,
juntos, integrados, apertados, com tal comunhão corporal que nem mesmo os
espíritos nos poderiam distinguir e separar.
A
chuva de verão chegava e estávamos encostados na janela aberta. Sempre aberta. As
águas seriam bem-vindas e lavariam nossos corpos cansados do calor da casa do
passado. E de nossas roupas que, naquela hora, se faziam incrivelmente desnecessárias.