Fundado em 28 de Setembro de 1998

30 de agosto de 2012

Clube da Felicidade



Respondo com um verso
ao menino inquieto
que habita seu coração.
Esses moços do CAEL
na verdade riem do humor
de poder ser ainda crianças
brincam nas tumbas
que enterraram doces lembranças
batem pique-pega entre mausoléus
pulam castelos de areia
miram bolas de gude
com olho de pirata e
ressuscitam inocências.
. . .


. . .

Eu gosto de ver
minha criança também está lá
espia e ri e às vezes se mete
no pula carniça
puxando a turma
pra dança de roda
passaraio, esconde anel
cabra cega, salada mista
festivas idades
de tantas saudades
seu escrito me fez lembrar.
(Rita)




20 de agosto de 2012

Lançamento de Livro - Travessia do Verso: Rita Magnago


No dia 25 de setembro de 2012, terça-feira, às 20 horas, na Sala Carlos Couto do Teatro Municipal de Niterói (RJ), acontece o lançamento do livro de poesias de Rita Magnago, "Travessia do Verso".



Rita Magnago nasceu no Rio de Janeiro, é jornalista, graduada pela UFRJ e pós-graduada em propaganda e marketing pela ESPM. Escreve poesias, crônicas e contos. Mantém, desde março de 2010, seu blog Alma Levada (http://ritamagnago.blogspot.com.br/). 

Rita participa do Clube de Leitura Icaraí desde Fevereiro de 2011

Convite

Lighter Side: Trouble expressing yourself



A gyertyák csonkig égnek: Sándor Márai



Aqui há um fogo que não morre nunca
e queima minhas entranhas
estranhas dores que desprezo e alimento.
Aqui há uma chama acesa
para que eu me apague
em silêncio
e cale a presunção.
Aqui há brasas que mantêm as raivas acordadas
apesar da idade do tempo.

E a esse fogo, a essa chama e a essas brasas
só posso responder vingando-me
por mim, de mim, em mim
general sem batalhas
solidão de castelo
perdendo a guerra.

Agora o vento com cheiro de tomilho
pode balançar os castiçais e
apagar as velas azuis
não há mais céu nem limite
nada mais me aquece ou instiga
foi-se a amizade, sucumbiu o amor
meu velho espírito 
à penumbra do viver
entende e se acalma
aplaca a fúria da traição
compensa a morte
com a mesma outra resposta
e pode partir na paz de um beijo mudo.

Rita Magnago




"As Velas Ardem Até ao Fim"

e* mãos de tesoura


Tesoura tesourão

BEM VINDOS AO CLUBE DE LEITURA ICARAÍ


15 de agosto de 2012

A Gente Vive o CLIc!





"A letra fala em 'mais uma página do mesmo livro / mais uma parte da mesma história' e 'a gente vive a história, vive a gente'. E diz, como nós leitores após mais um livro lido: 'e sem ser mais o mesmo, ainda sou quem era'.

Interessante a comparação com a literatura."

9 de agosto de 2012

Um Pouco De Mim: Ilnéa País de Miranda




Quando eu era pequena, alimentos e remédios naturais eram a regra, não a exceção. Comia-se feijão, verduras, legumes - muitas vezes plantados e colhidos no fundo dos quintais - ovos frescos das galinhas que chocavam pintos, e às vezes viravam almoço de domingo; galinhas que se bem recordo, eram alimentadas com milho, que ciscavam pedrinhas, que comiam capim que teimava em brotar pelo chão. Galinhas, do meu tempo de menina.
Gengibre com mel para as tosses, chá de broto de goiabeira para os "piriris", chás de sabugueiro para o sarampo, que logo, logo, saia pelo pé... ah! e bem gostava de um resfriadozinho, acompanhado de uma febrinha, que assim tomava um chá de folha de laranjeira com açúcar queimado e ficava de molho lendo minhas histórias
Os doutores de minha infância não eram "especialistas", eram especiais. Eram um pouco de tudo: um pouco alopatas - embora tal palavra não constasse do vocabulário de ninguém - um pouco homeopatas e não se furtavam usar a sabedoria tradicional dos antepassados, próprios ou importados.
Depois, a medicina mudou. Os doutores se "especializaram" e, para mim, perderam o encanto. Reconhecia-lhes - e reconheço - a competência mas por muitos anos as lides curadoras deixaram de me fascinar.
Precisei seguir um caminho difícil até reencontrar o encanto do "curar". E, coração aberto, reencontrei os quase bruxos de minha infância. Esse povo que dá mais importância à pessoa que aos males que a atacam, que nos olham como seres vivos que precisam de ajuda, antes de pensar que temos algo "funcionando de modo errado".
E foi neste caminho, onde a medicina vibracional, dita alternativa, complementar, é respeitada e respeita o ser, que encontrei Sabina Pettitt e seu magnífico trabalho, quase mágico, com suas flores, suas plantas, seus pequenos e grandes animais marinhos, suas essências, sua medicina.
Em abril de 1998, após alguns anos de estudos e três visitas a seus lugares de pesquisa e quatro cursos regulares, com orgulho e humildade, recebi dela e de seu marido Michael, o primeiro certificado de Energy Medicine® Facilitator autorizado por Pacific Essences®.
Grata,
Ilnéa
 (coisas do meu caminho ....         Ilnéa País de Miranda é natural do Estado do Rio de Janeiro e moradora de Niterói. É escritora, tradutora, terapeuta vibracional, contadeira de histórias...e advogada das causas e das coisas em que acredita.

8 de agosto de 2012

Viagem ao Mundo de Ilnéa



Terminei a leitura de “Eu menina toda prosa… e alguma poesia” com um gosto de vida nos lábios, como se tivesse beijado a terra molhada de uma fazenda do interior, comido as cocadas, tomado o café quentinho, recém-saído do livro de Ilnéa País de Miranda, nossa trovadora-mor no CLIc. Ainda vejo o cavalo querido e a sala de aula improvável, desprovida do básico. Talvez certos vazios em nossa vida tenham a capacidade de nos remeter a nós mesmos, já que desaparecem as parafernálias, os equipamentos e as belezas que sempre nos distraem. Não sei qual é ou foi a profissão de Ilnéa, mas diria que ela é, sem dúvida, uma psicóloga atenta desde seus quatro aninhos de idade. Seus escritos, poemas e prosa, elaboram os mais primitivos sentimentos, as perdas da infância, com uma clareza desconsertante.

As lembranças infantis estão no livro – as boas e as nem tanto – elaboradas pela Ilnéa adulta como se esta embalasse a criança que foi, tomada no colo para que ouça baixinho nos ouvidos uma palavra de carinho, de amor. Todos nós, por mais adultos ou idosos que estejamos, em nossa mente ainda somos aquele mesmo menino ou menina que um dia, há tantos anos, originou nossos pensamentos, nosso gostar, nossas dores. E é muito bom que possamos, nessa idade adulta, acalentar a criança que fomos, explicar a ela a natureza daquelas perdas e dores que tanto nos magoaram na infância, e brindar com ela as boas memórias, as comidinhas, os confortos, os amigos, os bons adultos que nos ampararam.

Ilnéa escreve, antes de mais nada, para ela, sobre ela, por ela. E nos deixa visitar esse mundo, com encantos e desencantos, mas sempre belo por que profundamente humano. Obrigado Ilnéa, por nos deixar conhecer este seu País de Miranda.

Abs, Newton.

7 de agosto de 2012

Autor CLIc: Ler Ficção - Mergulhar na aventura ou investigar entrelinhas?: Elenir Teixeira


Elenir Teixeira

Do material que uso, as palavras pertencem a todo mundo e estão no dicionário. As idéias são da humanidade, chegadas a mim no convívio de todos, cultos e iletrados. Só a teia é minha.”
                              
                                                                                                  (Millor Fernandes)
                              
                    
              Stephen Kanitz, articulista da revista Veja, no artigo intitulado “Intenções por trás das palavras” e Amós Oz, escritor israelense, na Introdução de seu livro E a história começa, teceram sua própria teia ao falar da produção literária. A comparação dessas duas abordagens sobre o mesmo assunto é o que me proponho fazer no presente trabalho.

            O senhor Kanitz inicia seu artigo afirmando que muitos escritores, cientistas e formadores de opinião usam e abusam de nossa confiança elaborando seus textos com intenções ocultas, as quais denomina “agenda oculta”. A primeira coisa que tento adivinhar, ele diz, é a agenda oculta de escritores, colunistas e pseudo-cientistas. Sempre desconfio delas. A partir daí, passa a dirigir sua crítica, apenas, ao escritor e de forma generalizada. Mestre em Administração de Empresas; Doutor em Ciências Contábeis; Professor Titular de Economia e Contabilidade, da USP e ocupando cargos referentes à Consultoria e a Aconselhamento Empresarial, lida sempre com ciências exatas, sendo compreensível, até certo ponto, sua desconfiança quando se trata de um texto literário e, especialmente, o ficcional. Está acostumado a procurar o que existe de verdade por trás de demonstrações financeiras habilmente mascaradas ou dados ocultos nas entrelinhas de contratos comerciais. É sua função. Não se justifica, entretanto, sua afirmação: “A nação idolatra quem faz parte da academia de letras (sic), os bons de bico, e não os que calculam bem e com rigor científico, ignorando os membros da Academia Brasileira de Ciências. Por isso, somos um país do me engana que eu gosto”. Não se reconhece, aí, o autor dos artigos “Como Combater a Arrogância”, “Práticas de Cidadania” e “A Importância da Ética”. Se ele usou expressão de uso popular para criticar o país e seu povo, entendemos cabível, de igual forma, citar a expressão, também popular, “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”.

             Contradizendo a afirmação de Kanitz sobre a necessidade de nos mantermos sempre atentos quanto às possíveis agendas ocultas dos escritores, julgamos oportuno citar alguns valiosos pronunciamentos referentes à produção literária e ao escritor. Jacques Derrida, filósofo francês e autor da Teoria da Desconstrução, ao abordar instigantes questões sobre a literatura, assim, se manifestou: “Quando o livro fica pronto ele segue vida própria. É o parricida de seu autor, na medida em que permite sua desconstrução em infinitas interpretações, de acordo com o olhar de cada leitor”. Compartilha desse mesmo entendimento, Roland Barthes, filósofo e escritor francês, ao dizer que, ao término do livro, dá-se a morte do escritor, pois, aí, ele já não lhe pertence, cabendo, ao leitor, completá-lo com seu olhar. Para Wolfang Iser, expoente máximo da literatura alemã, e autor da Teoria da Recepção, a leitura é um processo de reconstrução do texto. Confronto entre a construção do autor e a reconstrução feita pelo leitor enquanto procede à sua leitura. A reconstrução não é intencional. Faz-se naturalmente e pode ocorrer de várias maneiras, de acordo com a visão de cada leitor.

              Naturalmente, a fantasia, no texto, pode entrelaçar-se com os pensamentos mais secretos e ocultos do escritor sem que ele próprio se dê conta. Assim, não somente o leitor se surpreenderá com os achados provenientes de seu olhar, mas também o próprio autor.

           É impossível, entretanto, pretender-se comparar os textos científicos e os puramente literários. Se Kanitz, com seu artigo, desejava chamar a atenção para a Academia Brasileira de Ciências, tudo bem. É louvável. Tanto os grandes cientistas , quanto os grandes escritores, merecem respeito e admiração. Acreditamos que o cientista ao descobrir uma fórmula, resultado de pesquisa, talvez de muitos anos, de inúmeras e exaustivas tentativas e de muitos erros, deve confrontar-se com aquele instante de epifania e incandescência, o verdadeiro “heureca barthesiano” gozado pelo escritor ao conseguir trazer para a página em branco a palavra, ou a frase ou a idéia que buscava para iniciar seu romance. Entretanto, o processo de escrita de ambos é completamente diferente. O cientista, quando começa a escrever, já tem algo para dizer. Não luta com a folha em branco a que, antes, nos referimos. O escritor quer dizer algo. Sente necessidade de escrever. Um desejo genuíno. Verdadeira compulsão. Para Roland Barthes, somente as obras literárias dão testemunho do Querer-Escrever, e, não, os discursos científicos.

        Concluindo, gostaríamos de comentar que, a nosso ver, Kanitz teria tentado persuadir o leitor a compartilhar de seu ponto de vista, utilizando-se, ele próprio, de agenda oculta, ao citar a frase infeliz de Salman Rushdie, autor de Versos Satânicos:“Na ficção pegamos o leitor desprevenido”. Como atribuir-lhe intenção oculta de ludibriar o leitor, porquanto seu objetivo era, justamente, chamar a atenção do povo contra a ditadura e o fundamentalismo islâmico, sendo, por isso, censurado, perseguido e ameaçado de morte?

          O mesmo ocorreu entre nós, durante a ditadura militar, em que apareceu a literatura de entrelinhas, cifrada. Precisava ser assim. A Festa, de Ivan Ângelo, e Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca, são exemplos disso.Enquanto o artigo de Stephan Kanitz conseguiu, provavelmente, desestimular em muitos o prazer pela leitura ficcional, assustando-os e implantando em suas mentes o temor pelas intenções ocultas do escritor, Amós Oz, ao contrário, os atrai, referindo-se com muita graça e leveza, à produção literária.

            De início, fala da inveja mútua que existia entre ele e seu pai, autor de livros acadêmicos. Este invejava-o por ser livre como um passarinho ao escrever conforme quisesse, sem ficar confinado por todo tipo de busca e pesquisa prévia, atrelado ao jugo de comparar fontes e fornecer provas. Ele, por sua vez, invejava em seu pai justamente isso, ou seja, poder contar com verdadeira bateria de apoio, livros, tabelas, referências, sem precisar confrontar-se com a zombeteira página em branco. É difícil começar, diz. E, com relação a esse começo, afirma nele existir, sempre, um contrato prévio entre o escritor e o leitor, havendo vários tipos de contrato, inclusive os fraudulentos em que o escritor parece revelar todo tipo de segredo, para que o leitor confiante morda a isca. Poderíamos pensar, a princípio, que ele igualmente está se referindo às agendas ocultas de que fala Kanitz. Entretanto, não é o caso. Amós Oz fala do contraste que pode surpreender o leitor quando a história segue um caminho não imaginado por ele ao ler seu começo. E isto, certamente, é o que a torna mais instigante e prazerosa a cada descoberta.

          Embora nossa proposta, inicialmente, abrangesse, apenas, a Introdução de seu livro, acrescentamos suas palavras constantes da Conclusão: “O jogo da leitura requer que você, leitor, assuma uma parte ativa, traga o campo de sua experiência de vida e sua própria inocência, bem como cuidado e astúcia. Em última análise, como em qualquer contrato, se você não ler as letras miúdas, pode ser ludibriado, mas às vezes pode ser ludibriado precisamente por se atolar nas letras miúdas e não conseguir ver a floresta, de tanto olhar as árvores”.

             Deixamos aqui, para o senhor Stephan Kanitz, a advertência do escritor Amóz Oz.


(Elenir Teixeira é poeta e membro do Clube de Leitura Icaraí desde Fevereiro de 2009)

2 de agosto de 2012

Clube do Conto - O Ódio: Carlos Rosa Moreira



            O bichano passou por baixo da mesinha de centro e deu um pulo ágil, aninhando-se sobre o peito do homem. Ele nem olhou para o gato. Continuou com os olhos fixos num ponto qualquer da parede, deixando a mão afagar displicentemente o pêlo sedoso do bicho. Pensava nela, na maldita. Desgraçada... Lembrava-se das humilhações, os episódios desagradáveis somados e tornados um imenso volume que jamais se esvaziava em palavras, só crescia dentro dele, crescia como a roupa suja jogada dentro de um armário que já não fecha as portas. Pensou na última discussão e a raiva amarga ficou estagnada em sua garganta; as mãos cravaram-se na almofada do sofá e no lombo frágil do gato que se pôs a salvo com um movimento destro, antes que a constrição fosse fatal.  Ele se assustou com o desespero do bichano e retornou de suas lonjuras crestadas pelo ódio. Deixou o sofá e foi à janela. Ela não demoraria a chegar. Pegou o controle remoto e ligou o televisor. Outra tarde idêntica... Meses e meses iguais desde que ficara sem trabalho. O barulho abrupto da chave denunciou que ela chegava.
            ‒ E então, como foi o dia? ‒ ela perguntou enquanto guardava a chave.
            ‒ Mesma coisa.
            ‒ Ficou em casa?
            ‒ O tempo todo.
            Com os olhos cravados na tela do televisor, olhando sem ver, ele via a sequência organizada da mulher: vai desabotoar o terninho, o escroto do terninho; e vai lavar a porra da mão; “fez café?”
            ‒ Fez café?
            ‒ Tá na mesa.
            ‒ Vou tomar um banho. Eles logo chegarão para o jantar.
            E ainda ter de suportar aqueles dois! As mãos espalmadas sobre as feições aborrecidas mostraram que precisava fazer a barba.
            No espelho, o olhar azul da mulher o fixava. A testa grande, eriçada de cabelos crespos queimados e as sobrancelhas severas davam-lhe um ar de reprovação permanente. E mais o irritava a boquinha petulante e miúda na face quase sem queixo, com aquela papadinha embaixo. Olhou no fundo dos seus olhos negros: vinte e um anos de casamento acabavam assim...

            ‒ Como está o salpicão?
            ‒ Ótimo, querida. O Alfredo já contou a novidade? Vai levar uns gringos a São Paulo, vão pagar em dólares.
            ‒ Não sei o porquê, mas eles escolheram o meu táxi... ‒ disse Alfredo, sem parar de mastigar.
            ‒ É o capricho, Alfredo, a vontade de vencer. Não é qualquer um que tem isso.
            Ele não conversava,  mastigava com a cara quase dentro do prato. Olhou para ela de baixo para cima: “Puta...”
            ‒ Depois nós vamos fazer uma viagenzinha. Um finalzinho de semana em Araruama, né, meu bem?
            O sorridente Alfredo concordou com a mulher e virou-se para ele, dando-lhe um tapinha nas costas.
            ‒ E você, rapaz, não fala nada? Tô preocupado com você.
            ‒ Tô prestando atenção na conversa.
            Ela parou de mastigar e perguntou a ele:
            ‒ Pagou a conta do telefone? Vi que o dinheiro ainda está no lugar em que deixei.
             Ele tirou os olhos do prato. Sentiu que os olhares se cravavam nele. Miserável... Não tem esse direito... Fazer isso com um homem de quarenta anos, na frente desses babacas!
            ‒ Pago amanhã.

            No dia seguinte, ele acordou mais cedo do que de costume. Pegou o carro e foi até o galpão que havia guardado seu sonho. O resto da maquinaria estava lá, intacta, apenas coberta de pó. O negócio não dera certo. As dívidas cresceram e muitos equipamentos tiveram de ser vendidos. Quase perdeu tudo. Ela ajudou, mas a que preço! Jogava na cara, desenterrava frustrações do passado, e não perdia oportunidade para humilhar. Fazia doer mais do que doía o próprio fracasso: “...vontade de vencer” ; “Não é qualquer um que tem isso”; “Pagou a conta?” Maldita!
            Ele examinou as máquinas, acionou a energia, apertou o botão. Funcionava. O que sobrou estava bom.

            ‒ Gostaria que fosse comigo até à fábrica amanhã de manhã.
            ‒ Por quê?
            ‒ Quero que veja algumas coisas antes de vender.
            Ela parou o carro onde ele indicou. Havia chovido. O vento da noite sacudira as árvores e a rua estava coberta de folhas. Um aroma de seiva e mato molhado espalhava-se pelo ar. Ele levantou a porta de correr e ela entrou, depois trancou por dentro.
            ‒ Isto está uma sujeira ‒ disse ela.
            ‒ Dê uma olhada naquele material.
            ‒ Que material?
            Ela virou a cabeça procurando o lugar para onde ele apontava. O pescoço fino sobressaiu abaixo dos cabelos crespos. Com um movimento ágil, ele passou o cordel em torno do pescoço da mulher. Ela ainda tentou se voltar, mas o garrote a obrigou ao gesto instintivo de levar as mãos ao pescoço para livrar-se do aperto. Inútil. Ele puxava as pontas do cordel uma para cada lado, cruzando-as na nuca da mulher. E apertava. Fechava os olhos, trincava os dentes e apertava. Quando se acabaram os estertores da desgraçada e o corpo desabou, ele o conteve, mas manteve a constrição por minutos, até que a deixou cair. Nervoso, olhou à volta. Na claraboia do telhado, folhas verdes colavam-se ao vidro. Despiu a mulher. Um fio de urina escorria por baixo do corpo; ao retirar a calcinha, sujou os dedos com fezes líquidas. Lavou as mãos e foi tomado por uma calma intensa, quase um torpor. Pôs um avental de borracha e tomou o corpo nos braços. Colocou-o sobre uma grande mesa de mármore e, com os facões dos magarefes, desmembrou-o. Deveria desossar, mas o cortador era dos maiores, as lâminas desmanchariam os pedaços magros da mulher. Colocou os pedaços no cortador e apertou o botão. No início ficou olhando, mas os ruídos e o odor de carne e sangue tornaram-se nauseantes. Preferiu ir para os fundos da fábrica, onde havia um janelão de vidro que permitia ver o céu. Passou ali o resto da manhã. Comeu uns sanduíches e bebeu água da torneira. Por volta de meio-dia um solzinho despontou, mas logo o vento frio o levou embora. Mais tarde o vento virou ventania e sacudiu as folhagens; com ele chegou uma chuvinha fina que acinzentou a tarde que, quanto mais caía, mais acinzentava a fábrica, deixando tudo com uma cor só. Quando a noite veio, ele desligou o cortador. Dentro da máquina encontrou bocados de carne, pedaços de ossos e uns restos inidentificáveis misturados a uma pasta sanguinolenta. Vestiu as luvas de borracha, catou aquilo tudo e jogou num saco plástico. Fez uma limpeza geral, deixando escorrer para o ralo todo sangue misturado à água de lavagem. Ao lavar o cortador, alguma coisa chamou sua atenção próximo ao buraco para escoamento. Abaixou-se e pegou o objeto. Rodou-o entre os dedos. A aliança da puta! Cerrou os olhos e, num clarão fugaz, recordou o momento em que, diante de Deus e dos homens, colocara no dedo dela a aliança. Abriu os olhos e viu diante de si o grande cortador. Jogou a aliança para cima e tornou a pegá-la fechando o punho. Então se lembrou da última consulta com seu dentista, precisava comprar material para o bloco do dente. Poderia derretê-la...


1 de agosto de 2012

Clube do Conto - Carpe Diem: Carlos Rosa Moreira




Helô... Queria estar de mãos dadas com você, mas não aqui. Queria estar aí, na nossa praia. Ah, Helô, por que não escolhi você a nossa praia? Por que não fiquei mais tempo, mais dias? Aquelas sextas-feiras de despedidas... por que não fiquei de vez! É tão difícil escolher ser feliz... Acho que fui ensinado a não ser feliz. Tenho o vento. O vento que começou a soprar sobre nós naquele início dos setenta. E sinto sua mão macia apertando a minha, a areia rangendo sob os nossos pés. O vento que não para, e leva seus cabelos castanhos de índia, misturando o sal ao perfume do seu xampu. É tão bom o sabor do seu corpo moreno e salgado. Que coisa estranha, Helô, sinto o cheiro do tempo... Por que não vivi o tempo todo? Por que escolhi não ficar? Helô, eu amo você. Percebo o aroma da sua casa... Deus, que saudade! O sofá da sala, coberto por aquela rede velha, a janela sempre aberta deixando entrar o leste que zunia em seus cabelos, nas casuarinas e trazia o perfume do mar. Tudo o que eu gosto está aí, esteve sempre, desde a primeira vez que vi. Ai, Helô, por que não juntei minha vida à sua? Você queria tanto que eu ficasse... que eu não fosse embora nas sextas... Você foi tão honesta! Eu não tive coragem. Será que eu te fiz feliz? Lembro de tantas coisas que faltaram dizer a você... E naquele dia eu poderia ter ido no dia seguinte. Por que não fui? Por que não fiquei? Como lembro de tudo... seus passos na rua de terra, o trinco do portão quando eu chegava, suas roupas... Queria voltar, Helô, queria tanto voltar!

‒ Doutor, rápido!

Vejo você num filme antigo, como as fotos coloridas esmaecidas pelo tempo. Engraçado... Por que a vejo tão longe, lá atrás nos setenta, se tínhamos as nossas semanas?

‒ Enfermeira, vá chamar o filho e a esposa.

Será que você sabe de mim? Ou se pergunta por que não cheguei para almoçar na terça-feira? É tão bom sentir seu cheiro... cheiro de mar, de cabelo cheiroso. Como você me olha, Helô, que luz! Que olhos castanhos brilhantes de mar... Ah...

‒ Doutor? Doutor! Meu Deus...

‒ Senhora, sinto muito, fizemos tudo... Não foi possível.