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7 de janeiro de 2017

Alvo Noturno: Ricardo Piglia (Prêmio Casa de las Américas 2012)



Sonhos noturnos (e diurnos) alvejados pela realidade 

Um ponto de vista (novaes/)

Achei este, de certa forma, um livro de paradoxos. Pelo menos, aparentes.

Apresenta-se como um "romance policial", pelo simples fato de girar em torno de um crime ocorrido logo ao início da história, mas na verdade mostra-se um livro revelador de uma estrutura social e econômica arcaica no campo argentino, o poder das famílias rurais inclusive historicamente explicado. Mas também não para por aí, e imiscui-se no psicológico, com maestria na construção do personagem Luca Belladona, mas também nas irmãs incestuosas e no comissário Croce, que esmagado pelo sistema poderoso e corrupto refugia-se entre os loucos para recompor sua sanidade, reconhecer-se são naquele ambiente hostil.

Ricardo Piglia, em seu "Alvo Noturno", usa um pensamento do personagem Renzi, na página 243, para resumir seu próprio livro:

A história continua, pode continuar. há várias conjecturas possíveis, fica aberta, só se interrompe. A investigação não tem fim, não pode terminar. Seria preciso inventar um novo gênero policial, a ficção paranoica. Todos são suspeitos, todos se sentem perseguidos. O criminoso não é mais um indivíduo isolado, mas uma quadrilha com poder absoluto. Ninguém entende o que está acontecendo; as pistas e os testemunhos são contraditórios e mantêm as suspeitas em aberto, como se mudassem a cada interpretação.

O autor argentino nos oferece um livro que usa o gênero policial como se fosse um mero disfarce, ou uma isca, como se pretendesse fisgar os ávidos e assíduos leitores desse gênero, para na verdade construir uma história bem diferente do que esperariam esses hipotéticos leitores, acostumados com a fórmula "crime-mistério-solução-castigo". Como a passagem destacada acima explica, em Alvo Noturno nada é tão simples. Termina o livro sem desvendar as motivações do crime e quem foram os criminosos. Um tanto frustrante, não?


Não. Não quando se percebe que a última coisa que interessa a Piglia é reduzir sua história a um conflito banal entre bandidos e mocinhos. Embora o livro gire o tempo todo em torno de um crime, por incrível que pareça o crime, em si, não é o centro da história. Ele não passa de um pretexto e por isso desvendá-lo não tem a menor importância para o autor. Pelo contrário, sua não-solução é exatamente a única solução que o autor vê como realista naquele vilarejo nos pampas argentinos. E, cá pra nós, não é mesmo assim também por aqui, em nossos grotões ou mesmo em nossas grandes cidades? Quantos crimes são desvendados? No Brasil este índice estava em 2%. No interior do país, quantas oligarquias não eliminam os que incomodam (sindicalistas rurais, sem-terra, indígenas, opositores políticos...) na base do assassinato, acobertados por um aparato local - policial, político e judicial - que efetivamente controlam com mãos de ferro?  Não há, afinal, diferença significativa entre nossos "coronéis" do interior e o Velho Belladona. Em Alvo Noturno, a solução realista, que é a não-solução do crime, é o recurso usado para denunciar essa triste realidade. Ricardo Piglia transforma, portanto, seu romance "policial" em algo mais, com pitadas políticas, sociais e econômicas que acabam servindo como um questionamento, talvez uma denúncia, de aspectos injustos da sociedade argentina (nos quais nos enxergamos integralmente, por sinal). 


Em meio a esse realismo cru, demonstrado naquilo que nos incomoda na leitura, ou seja, na sucessão de fatos e detalhes que aparentemente para nada servem, já que não desvendam o crime de fato - porque ocorreu e quem foram os envolvidos - em meio a essa realidade perdida, confusa, misteriosa, Piglia insere um Luca surreal que constrói sua "Nautilus", um "veículo imóvel que traz o mundo até nós". Parece-me uma alegoria ao livro, esse "veículo" que também traz o mundo até nós.


Está aí, a meu ver, o ingrediente mais interessante de Alvo Noturno, aquele que realmente acrescentou uma novidade à história, que me trouxe uma reflexão nova: o dado psicológico. Especialmente em Luca, o personagem que mergulhara em seus ilusórios projetos com uma determinação tão bela quanto doentia. A cena em que Luca está perante a Justiça e é obrigado a decidir-se, a chocar seus sonhos com a realidade nada agradável daquela região e seus podres poderes, parece-me o momento mais revelador e crucial do livro. 


Luca tinha força para defender sua utopia porque julgava-se certo em sua luta, julgava-se injustiçado, enfim, acreditava (literalmente, por sinal) em seus sonhos, acreditava que representava o Bem (digamos assim) em luta contra o Mal (do qual fazia parte o canalha Cueto). Quando, na audiência judicial, Luca é posto na encruzilhada e opta por manter sua ilusão a custa de uma injustiça, quando ele aceita compor com os interesses de Cueto, ceder a ele, submeter-se, e faz isso pelo dinheiro que garantiria a continuidade de seus sonhos e projetos, ali Luca, sem perceber, quebrou toda a força de sua alma. Não pôde viver em paz com aquilo, enfraqueceu sua determinação, corrompeu-se, perdeu as razões morais que sustentavam sua luta. E acabou como acabou - e aqui tanto faz se se matou mesmo ou foi vítima de "queima de arquivo". 


Ao fugir da realidade e não encará-la quando foi posto à prova, Luca foi engolido por ela. Talvez tenha sido esse o "recado" de Ricardo Piglia em Alvo Noturno. Depois de nos deixar naufragar naquela realidade inconclusa do crime, depois de nos mostrar como se deu a expulsão de índios, a ocupação e conquista de grandes glebas de terra no interior da Argentina, depois de nos mostrar as relações de poder (e sexo) entre os Belladona e polícia (Ada-Cueto) e imprensa (Sofía-Renzi), o autor parece nos dizer com Luca que não é possível iludir-se perante estes contextos bem reais. Todos ali estão muito conscientes do que fazem, inclusive as belas irmãs, e viver no mundo da Lua, inebriado por sua brancura noturna, não levará ninguém à redenção. Reparem que, caso Luca decidisse pelo oposto, ou seja, não incriminar um inocente e perder a fábrica aos credores, haveria sim o sofrimento, mas seria pela perda de uma ilusão. E perder ilusões, mesmo que isso doa muito, sempre traz benefícios, pois poderemos depois disso trilhar caminhos mais reais, verdadeiros e, agora sim, felizes.


novaes/


Um comentário:

  1. ceci constant lohmann7 de julho de 2012 às 17:32

    Realmente muito bom seu comentario..só o li hj..abs Ceci

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